NÃO MATARÁS
*Crônica escrita pelo Comunicador Popular Teobaldo Winter, de Cuiabá, para o Processo de Formação Continuada e Multiplicadora do FMCJS.
A visão antropocêntrica utilitária de direito ambiental subjuga todas as outras necessidades, interesses e valores da natureza em favor daqueles relativos à humanidade” (JUNIOR; BARROS, 2020. p.15).
Fui criado próximo a um rio, até mesmo um igarapé. Bem próximo à nossa casa havia tres vertentes de água. Elas formaram um pequeno pântano. A água estava lá, quem sabe, correndo por milhões de anos, limpinha. E a água é a vida. Vida de tudo e de todos, sem distinção. E não faltava nada para ninguém.
Enquanto criança, meus pais, especialmente a mãe, me ensinaram que devemos ter cuidado com os rios, as vertentes de água, os animais, os matos. Não devíamos deixar que os animais passassem fome ou sede, ou desabrigados, isto é, ficassem expostos ao longo período de sol quente ou na chuva. Cuidar para que os porcos, os bois, as galinhas, as vacas, os cachorros, os gatos tivessem alimento e água. Se estivessem doentes, deviam ser tratados. As árvores não deveriam ser derrubadas, só o necessário, pois, são fonte de alimento, de proteção, de abrigo. Não devíamos fazer nossas necessidades fisiológicas na água, pois, as pessoas e os animais precisavam daquela água. Sim, até mesmo Jesus poderia um dia passar por aí e beber daquela água. Ela precisava estar sempre limpa.
No fim dos anos 60 e começo de 70, técnicos agrícolas passaram por aquela região, vendendo adubos químicos, herbicidas e pesticidas. O povo tinha sua resistência, pois, a ação daqueles “produtos” era desconhecida e poderia representar prejuízo e morte de animais. A dúvida era sobre prejuízos à saúde, ao ambiente e à economia dos agricultores. Os técnicos, então, ensinaram que aquela explicação dos pais era puro atraso. Atrapalhava progresso. Diziam que os agricultores, aplicando estes produtos, iriam trabalhar menos, não iriam se “judiar tanto”, na roça, e iriam ganhar mais. O progresso “está chegando”, diziam. E que Jesus não tem nada a ver com isso.
Quando saí de casa para estudar, ainda adolescente, eu ouvi alguém dizer que os cristãos eram a favor do desmatamento, porque eles entenderam que Deus lhes deu a tarefa de dominar e sujeitar a terra, o mato, os bichos ferozes. Diziam que isso estava escrito na Bíblia. Apontavam para Gênesis 1.28, onde Deus abençoou os seres humanos e disse que eles deveriam se multiplicar, encher a terra, sujeitá-la e dominar sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja na terra.
Há duas visões principais: visão antropológica e visão biocêntrica. “A visão antropológica utilitária coloca em risco a própria humanidade, daí a necessidade de impor limitações éticas e ecológicas à ação humana” (JUNIOR; BARROS, 2020. p.06).
Com dúvidas e confuso, perguntei a um professor de Bíblia para explicar. Ele explicou que Deus diz não é devastar, mas administrar responsavelmente o seu jardim, e nele viver dignamente. Fez uma outra referência bíblica, em Gênesis 2.15, são usados os verbos hebraicos “abad” (cultuar, servir) e “shamar ( obedecer, observar). Ali, Deus colocou o ser humano no jardim para o “servir” e “obedecer”. Outras traduções dizem que Deus o criou e colocou ali para cultivar, guardar e cuidar do jardim.
É possível que existam cristãos que usam textos bíblicos para justificarem seus interesses. Mas é duvidoso o que dizem sobre a devastação, a partir da Bíblia. Há razões suficientes para levantar argumentos pelo cuidado e atenção a respeito da vida humana e ao seu redor. Vamos verificar na nossa Bíblia.
Depois da devastação do dilúvio, Deus faz a aliança com todos os seres da terra: “Deus disse a Noé: Este é o sinal da aliança estabelecida entre mim e todos os seres viventes sobre a terra”, Gênesis 9.17. Deus não diz: vou fazer aliança com você, Noé, para você dominar e devastar a natureza. Pelo contrário, ele abençoa todos os seres viventes e assegura a vida sobre a face da terra. Portanto, todos os seres viventes, não só o ser humano, recebem a bênção e o cuidado de Deus, seu criador.
O salmista canta a beleza da natureza. No Salmo 104.27-30, por exemplo, diz: “Todos estes animais dependem de ti, esperando que lhes dês o alimento no tempo certo. Tu dás a comida, e eles comem e ficam satisfeitos. Quando escondes o rosto, eles ficam com medo. Quando lhes dás o sopro da vida, eles nascem. E assim dás nova vida à terra. Que a glória de Deus, o Senhor, dure para sempre. Que ele se alegre com aquilo que fez.”Você pode imaginar estas cenas, em que os animais estão esperando que Deus abra o seu coração para eles? Quando você dá um alimento ao seu cachorro, ele vem lamber na sua mão. A lambida é o beijo de agradecimento que o cachorro lhe dá. Imagina todos os animais da terra, beijando Deus como agradecimento pela comida e cuidado que recebem dele?
Isaías diz que Deus vai reconstruir a sua criação que se corrompeu. Ele vai reconciliar os animais que competem, se combatem, se matam e se destroem. “Os lobos e os carneirinhos vão pastar juntos. Os leões comerão palha com os bois. As cobras não atacarão mais ninguém. No meu monte santo, não acontecerá nada que seja mau ou perigoso, diz o Senhor”, Isaías 65.25. Deus vai criar novo céu e nova terra. Ele vai criar novos homens, novas mulheres, novos animais, que não mais vão se matar, se destruir, mutuamente. Viverão reconciliados e cuidadores do seu ambiente.
O apóstolo Paulo nos lembra de sofrimentos e dores que existem, em toda parte. “O universo todo espera com muita paciência o momento em que Deus vai revelar o que seus filhos realmente são… Um dia, o próprio universo vai ficar livre do poder destruidor que o mantém escravo e tomará parte na gloriosa liberdade dos filhos de Deus”, Romanos 8.19.21. Deus vai libertar a nós. Deus vai libertar a natureza de nossa ignorância, nossa ganância e de nosso poder destruidor. Somos inimigos do meio ambiente, somos inimigos das árvores, dos rios, dos animais. Animais têm medo e fogem de nós. “Se árvores tivessem pernas, fugiriam de nós”, escreve Leonardo Boff. Precisamos nos reconciliar com o meio ambiente. A reconciliação é desejo de Deus. Não é somente opção para nós, mas é necessidade para a continuidade da vida.
Filipenses fala da abrangência e da alegria da obra salvadora de Jesus Cristo: “…, em homenagem ao nome de Jesus, todas as criaturas no céu, na terra e no mundo dos mortos, caiam de joelhos e declarem abertamente que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus, o Pai”, Filipenses 2. 10-11. A obra libertadora de Jesus atinge todos os seres viventes. E é para o júbilo e a honra de Deus, criador e recriador.
Hoje, entendo que a explicação dos pais não era atraso, mas responsabilidade de quem tinha compromisso de fé com todos os seres viventes da terra. Sei, também, que nos anos de 1970, o Brasil começou a nadar fortemente na “contramão” dos cuidados com o ambiente. Nesta época, era política oficial do país incentivar indústrias poluidoras a se estabelecerem no país. Lembro-me de dois exemplos: a venda indiscriminada de agrotóxicos, alguns proibidos na Europa, e a instalação de indústrias, sendo que Cubatão, em São Paulo, é um exemplo dos erros do Brasil, nesta área ou, mesmo, a indústria Borregard1, em Porto Alegre. Ela foi instalada no início dos anos de 1970 e espalhou, na época, cheiro de ovo pobre em toda grande Porto Alegre. O problema foi resolvido, mas através das ações coletivas da população. E de muito diálogo e ações institucionais.
A respeito disso, escreve Feldmann: “Torna-se inevitável no dia de hoje lembrar que é Dia Mundial do Meio Ambiente, instituído em 1972, por ocasião da realização da primeira Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente realizada em Estocolmo. Pode-se afirmar, portanto, que o marco de tomada de consciência mundial sobre os problemas ambientais se deu neste início da década de 70, inclusive com a publicação do livro “Limites do Crescimento”. O Brasil tem participação ativa naquela Conferência, defendendo a posição de que “poluição é sinônimo de progresso”, encarando a nova preocupação mundial como espécie de conspiração contra o desenvolvimento de países de terceiro mundo. Chegamos a publicar anúncios convidando indústrias poluidoras a se instalarem aqui e como resultado desta visão equivocada tivemos o triste exemplo de Cubatão, considerado um mau exemplo. (Fabio Feldmann, 05/06/2007, em terra magazine)
Valor intrínseco, bioética? Os direitos humanos e os direitos na natureza equivalem. Um não existe sem o outro. Mas também o direito da natureza independe do julgamento humano. “A bioética diz que a natureza tem valor intrínseco, de direito próprio, independentemente de seu valor para os seres humanos” (JUNIOR; BARROS, 2020. p.18).
É uma informação muito importante, dado por um cientista que vive nas entranhas das lutas históricas por desenvolvimento que seja ecologicamente sustentável, economicamente viável e socialmente justo. Ou, mais ainda, que o ser humano é parte integrado do sistema de vida global. O ser humano é terra. Do pó da terra foi formada e à terra retorna (Gn 2.7) A gente sempre precisa cuidar do todo e fazer as coisas certas para que a vida seja melhor em todos os sentidos. Mas sempre precisamos ser vigilantes. Cuidar mais das coisas que recebemos de Deus. Deus nos ama, mas ele ama também todas as outras partes e seres do ambiente que ele criou.
O músico Paulinho expressa a sua saudade dos bons tempos, tempos de água limpa, no rio Guaíba: “Hoje olhando as águas turvas a rolarem para o mar/ Que vontade de voltar aos bons tempos que vivi/ Ver mamãe lavando roupa com sorriso de bonança / No seu rosto a esperança dos meus cantos de guri (Paulinho Pires, Porto Alegre, RS, maio 2006)”.
A saudade que sentimos não nos pode parar. Parados, morreremos. A saudade nos indica caminhos e ela nos faz olhar para frente. Podemos agir em muitas frentes, para não ficar só na saudade. Há muitas frentes e maneiras de atuar. Lembro três coisas muito simples, mas poderosas.
Voltando ao igarapé e às fontes de minha terra natal, teve uma mudança profunda. Quando fui passar uns dias na casa velha, em 1975, encontrei meu irmão triste e abatido. Perguntado, ele disse: “No fim do inverno aqui era muito fedor. Os peixes morreram. Vinha boiando já podres sobre a água do rio”.
Surpreso, continuamos a conversa. O que aconteceu? Ele continuou o relato triste, indignado: “Os guri2 da escola agrícola convenceram a maioria dos parentes comprarem adubo e veneno. Diziam que a vida seria mais fácil. E iriam colher mais. E estão lá como senão fosse Sistema de vida, o que é isso? Nos Direitos da Natureza, o centro está posto na Natureza, que inclui, certamente, o ser humano. A Natureza vale por si mesma, independentemente da utilidade ou usos que o ser humano fizer dela. É isto o que representa a visão biocêntrica […] Esses direitos defendem a manutenção dos sistemas de vida, os conjuntos de vida (JUNIOR; BARROS, 2020. p.09).
O progresso propagado pela política econômica do regime militar é assassino, mata, produz mortes. Em terras brasileiras, o mau cheiro da morte antes do tempo foi considerado progresso. Não é mais possível de fazer apenas alguns reparos. Mudança total. Paremos com isso. A humanidade foi avisada: parem de matar. Fomos considerados culpados e estamos sendo condenados. Paremos de matar e destruir nossa casa comum.
Teobaldo Witter, Cuiabá, MT, 06 06 2020
Referência bibliográfica
JUNIOR, Felício de Araujo Pontes ; BARROS, Lucivaldo Vasconcelos. A NATUREZA COMO SUJEITO DE DIREITOS: A proteção do Rio Xingu em face da construção de Belo Monte. Brasília. Forum mudanças climáticas e justiça ambiental, 2020 (cópia do material do curso)
1 Fábrica de celulose Borregaard se instalou no Rio Grande do Sul, em 16 de março de 1972. É um marco na luta ambiental em Porto Alegre e região, no RS. Para mim, essa experiência me sensibilizou e validou minhas lutas ambientais.
2 Os guri da escola agrícola: assim eram conhecidos os jovens que foram para escola agrícola fazer cursos técnicos agrícolas de ensino médio. Voltavam ao campo para vender adubos químicos, herbicidades, fungidas etc. nada. Como senão fosse com eles. Lavaram os tanques de passar veneno no rio. E mataram os peixes. Acabou. O rio está morto”.