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Os Direitos da natureza

*Artigo escrito pela Comunicadora Popular Lucimar Ferreira Carvalho, de São Luis do Maranhão, para o Processo de Formação Continuada e Multiplicadora do FMCJS.

INTRODUÇÃO

Irei traçar neste trabalho para tratar dos Direitos da Natureza, alguns primórdios que são a base para a concepção homogênea que buscamos romper, tais como a influência do darwinismo social de Herbet Spencer na teoria da evolução. Também a análise do texto do ilustre jurista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni, “La Pachamama y el humano”, publicado no livro La naturaleza con derechos – de la filosofia a la política, tendo como compiladores Alberto Acosta e Esperanza Martinez e que neste trabalho, Zaffaroni relaciona como as concepções evolucionistas do século XVIII e XIX influenciaram sobre a relação entre o homem e a natureza, a submissão desta à vontade e necessidades do ser humano, desconsiderando seus limites e ciclos vitais e as possibilidades atuais de emancipação da Natureza como titular de direitos. 

Tal direcionamento se ampara numa discussão atual sobre a natureza, seus limites e como essa discussão se insere ou não se insere no mundo jurídico. Os chamados Direitos da Natureza vêm questionar a concepção antropocêntrica que vigorou – e ainda vigora em muitos ambientes – a relação entre homem e natureza, e que a partir do novo constitucionalismo latino-americano, mais especificamente da Constituição do Equador e Bolívia, rompe com tal paradigma ao trazer a natureza como sujeito de direitos. 

Uma importante emancipação tanto do ponto de vista da normativa jurídica como também de paradigmas predominantes eurocêntricos.

O chamado Darwinismo Social 

Primeiramente importante partir da teoria de Darwin e suas caraterísticas principais. A Teoria da Evolução preconizada por Darwin indicava no mundo biológico que a seleção natural seria a forma como os indivíduos (seres vivos) estão sujeitos a uma pressão do ambiente que irá “selecionar” os indivíduos mais adaptados que conseguirão se adequar e sobreviver a esta pressão, daí passarão adiante seus caracteres hereditários para seus descendentes. Isso, no entanto era ao acaso, não tem um fim, uma direção. É algo aleatório.

O âmago dessa teoria, da seleção natural e sobrevivência dos mais adaptados, ou mais ‘aptos’ foi transferida para a sociedade a partir de reflexões de cientistas sociais, explicando inclusive a estratificação e desigualdade social como sendo algo ‘natural’. A superioridade de algumas sociedades sobre outras (a europeia da época, no caso) seria então uma situação normal e sendo ela superior às demais seria comum que avançasse sobre as outras sociedades de raças ‘inferiores’, como as asiáticas, africanas e da América do Sul. 

Essa teoria aplicada às sociedades gerou outras teorias, como a eugenia (melhoramento genético para o aperfeiçoamento de uma raça, a ariana, base do nazismo), o racismo científico em que o negro e o índio eram considerados seres humanos inferiores e que inclusive teve impactos em intelectuais brasileiros.

Podemos citar Silvio Romero com sua ideia de branqueamento do povo brasileiro a partir de migrações de europeus para o Brasil. Nina Rodrigues com seus estudos sobre negros e índios que além de inferiores, deveriam ter tratamentos diferenciados no Código Penal. Outro ‘ilustre’ racista foi Monteiro Lobato com seu personagem Jeca Tatu menosprezando a pessoa do interior. 

Tal qual esses estudiosos e escritores acima que vivenciavam essa realidade no período, Euclides da Cunha foi outro que reforçava tais concepções. Seu ideal evolucionista está presente no clássico Os Sertões[1]:

“…A raça superior torna-se o objetivo remoto para onde tendem os mestiços deprimidos e estes, procurando-a, obedecem ao próprio instinto da conservação e da defesa. É que são invioláveis as leis do desenvolvimento das espécies; e se toda a sutileza dos missionários tem sido impotente para afeiçoar o espírito do selvagem às mais simples concepções de um estado mental superior; se não há esforços que consigam do africano, entregue à solicitude dos melhores mestres, o aproximar-se sequer do nível intelectual médio do indo-europeu — porque todo o homem é antes de tudo uma integração de esforços da raça a que pertence e o seu cérebro uma herança — , como compreender-se a normalidade do tipo antropológico que aparece, de improviso, enfeixando tendências tão opostas ?” (p. 49)

Essa sua visão do sertanejo apresenta a influência ideológica do evolucionismo imperante naquela época, a divisão em raças e sub-raças, e o quanto a mestiçagem pode também ser prejudicial para a raça ‘superior’, “é que neste caso a raça forte não destrói a fraca pelas armas, esmaga-a pela civilização” (CUNHA, 49)

O impacto da teoria de Spencer e sua relação com Direitos da Natureza

Trazendo agora para abordagem que Zaffaroni nos coloca que Spencer fez uma ‘deformação’ da teoria de Darwin, com seu conceito de “sobrevivência do mais apto”. Para o autor, os biólogos contemporâneos entendem que o mais apto seria o “mais fecundo e não o mais forte no sentido físico” (ZAFFARONI, 2011, p. 76). Atualmente se revoluciona o próprio conceito de evolução com vários autores que se debruçam sobre a temática.

Entende ainda que na evolução, não é preponderante a competiçãoentre os indivíduos e sim um processo de cooperação:

“La vida no aparece sobre el planeta sino en forma microscópica, como resultado también de síntesis y complejizaciones moleculares. Microorganismos que agraden a otros en cierto momento se instalan en su interior, se simbiotizan, cooperan para sobrevivir y derivan en otro más complejo”. (ZAFFARONI, 2011, p. 77)

Essa releitura de Darwin rechaça a concepção de Spencer que legitimou o colonialismo e legitima o neocolonialismo a partir de sua visão de progresso, de evolução que os biologicamente superiores seriam os sobreviventes (raça branca superior). As raças inferiores deveriam assim ser tuteladas pela raça superior, o que acabou por legitimar a dominação europeia:

“el positivismo dedujo que los aún medio animales de otras razas debían ser tutelados por los superiores (neocolonialismo) y dentro de la propia raza los inferiores – los medio animales delincuentes – debían ser eliminados por la selección natural o sus sucedáneos – el sistema penal – en beneficio de los más fuertes y sanos, para evitar la decadencia de la raza y reforzar el progreso biológico evolutivo.” (ZAFFARONI, 2011, p. 42)

Essa ideia de Spencer da seleção natural transferida para a sociedade humana seria para Zaffaroni a legitimidade da lei natural do genocídio em que os inferiores que incomodam deveriam ser eliminados e que, portanto os titulares plenos do direito seriam os humanos superiores. E dentro da questão ambiental, os animais seriam receptores de uma certa piedade, sem direitos enquanto os humanos inferiores poderiam não ser escravizados.

A partir dessa ideia, Zaffaroni, traça os direitos ambientais a partir da penalização a maltrato de animais desde a segunda metade do século XIX, se desenvolvendo várias teorias sobre o direito.

Traz ainda o autor James Lovelock com sua hipótese Gaia justamente invocando que a vida planetária é autorregulada e que somos parte dela e que se trata de:

“…reconocer obligaciones éticas respecto de ellos, que se derivan de la circunstancia de participar conjuntamente en un todo vivo, de cuya salud dependemos todos, humanos y no humanos.” (ZAFFARONI, 2011, p. 81)

Dessa forma o direito não seria limitante nem tampouco exclusivo aos seres humanos. Realoca Darwin, trabalha com a colaboração, cooperação como regra de sobrevivência, dessa forma descarta Spencer. Os direitos da natureza nesse sentido buscam concretizar essa percepção e garantia diante do avanço depredador do capitalismo sobre a natureza, vista como mera fonte de ‘recurso’.  Não somos externos, hóspedes de Gaia (terra), mas sim fazemos parte dela.

A cooperação como regra para a convivência e sobrevivência surge como um novo paradigma, uma obrigação ética desde e dentro de Gaia, reconhecendo direitos de todos os indivíduos, seres que aqui habitam e compartilham com os humanos esse espaço.

Os Povos originários e suas concepções de vida no novo constitucionalismo latinoamericano

Neste imenso território denominado pelos povos originários de Abya-Yala[2]conviviam inúmeros povos com inúmeras línguas, com formas próprias daquilo que chamamos de organização social. A hegemonização destes diferentes povos sob a denominação de ‘índios’ muito contribuiu para que houvesse sua invisibilização na ‘história’ oficial e no desenrolar do processo de conquista do continente pelos europeus[3].

Durante o processo colonial nas Américas, os povos indígenas foram sendo massacrados, fisicamente, psicologicamente, espiritualmente. Tiveram suas crenças, seus ritos, suas formas de vida, seus ancestrais sendo desvalorizados, subalternizados, invisibilizados e logo foram obrigados a serem calados sobre sua identidade indígena como forma de sobrevivência física, mas nas suas memórias era e é latente o espírito guerreiro como se vislumbram nos processos de insurgência dos movimentos dos povos indígenas na América Latina que tiveram profundos impactos no sistema estatal vigente. 

A partir das décadas de 70 do século passado paulatinamente os movimentos indígenas de Abya Yala foram se organizando e se manifestando de forma mais contundente perante a sociedade, o Estado, exigindo o reconhecimento de sua existência e de seus universos culturais próprios, ocasionando profundos impactos nos ordenamentos jurídicos destes países. Souza Filho (2016) dispõe nesse trabalho como foi o processo de rompimento com a lógica integracionista vigente anteriormente, inclusive dá ênfase á Constituição Brasileira de 1988, tida como um ‘divisor de águas’ no ordenamento jurídico dos países da região. 

A uninacionalidade, a monoculturalidade foram questionadas irrompendo temas como multiculturalidade, plurinacionalidades, interculturalidades. Racionalidades e sistemas de vidas distintos abriram novas perspectivas nas relações sociais e também como propostas alternativas ao persistente colonialismo na sua forma atual de colonialidade.

As reformas constitucionais do Equador, Colômbia e Bolívia são marcos no chamado ‘Novo Constitucionalismo’ latino-americano pautado no pluralismo jurídico, além do ocorrido no Brasil já citado anteriormente. 

Citaremos exemplos de como nas Cartas maior destes países abarcaram e reconheceram suas diversidades étnicas e suas visões de mundo, buscando a implementação de um Estado pluricultural emergente, com suas limitações e questionamentos.

Na Constituição do Equador de 1998 há a consideração da natureza como um ser de direitos, assim como o buen vivir[4]como princípio a seguir pela sociedade equatoriana está dispersa pela Constituição, inclusive com um Capítulo inteiro de “Direitos do Bem Viver”. Os direitos dos povos originários e tradicionais também são reconhecidos dentro do corpo da própria Constituição[5].  A já citada Constituição do Equador, no seu artigo 71 dispõe: 

“La naturaliza o Pachamama, donde se reproduce y realiza la vida, tiene derecho a que se respete integralmente su existência y el mantenimiento y regeneración de sus ciclos vitales, estrutura, funciones y processos evolutivos”. 

Em Bolívia na sua Constituição atual de 2009 também rompe com um direcionamento colonial, trazendo importantes conquistas do movimento indígena boliviano ao reconhecer direitos dos povos e nações que a constituem:

Derechos De Las Naciones Y Pueblos Indígena Originario Campesinos. Artículo 30. – I.Es nación y pueblo indígena originario campesino toda la colectividad humana que comparta identidad cultural, idioma, tradición histórica, instituciones, territorialidad y cosmovisión, cuya existencia es anterior a la invasióncolonial española. 

A partir desses tópicos, podemos refletir como a influência da Teoria evolucionista contribuiu para uma legitimação de variados crimes, contra a humanidade, contra o planeta. Sua interpretação do Darwinismo transferiu da biologia para os estudos das sociedades a dinâmica evolucionista que foi o ponto de amparo e de justificação de dominação da sociedade europeia sobre os demais.

O ser humano por muito tempo se arvorou ser superior – teoria antropocêntrica, que inclusive já se encontra ultrapassada e se vislumbra há décadas a emergência de paradigmas baseados em outras cosmovisões, outros conhecimentos. A emergência desses outros paradigmas busca justamente questionar a depredação histórica contra a natureza que muito tempo foi vista como uma fonte de recursos para girar a máquina do capitalismo. 

É a luta que encampamos por uma outra visão de progresso, de evolução, de sociedade.

Referências Bibliográficas:

QUIJANO, Aníbal. Don Quijote y Los Molinos de Viento en América Latina. Disponível em < http://biblioteca.clacso.edu.ar/Costa_Rica/dei/20120711013853/donquijote.pdf>acesso em 07 de junho de 2020.

SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Direitos dos Povos Indígenas. In SHIRAISHI NETO, Joaquim. (Org.) Novos direitos na américa Latina: estudo comparativo como instrumento de reflexão do próprio direito. São Luis: EDUFMA, 2016.

WALSH, Catherine. Interculturalidad, Estado, Sociedad: Luchas (de)coloniales de nuestra época. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar/Abya Yala, 2009.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La Pachamama y el humano. In ACOSTA, Alberto; MARTINEZ, Esperanza (Orgs). La naturaleza con derechos – de la filosofia a la política.Quito: Ed. Abya Yala, 2011.


[1]Trecho do Livro os Sertões de Euclides da Cunha, disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000091.pdf

[2]O nome Abya-Yala que significa em língua do Povo Kuna, Terra Madura, Terra em florescimento e representa atualmente o contraponto em substituição aonome “América”- nome dado pelo colonizador – significando a existência de outro sujeito enunciador de discurso até aqui calado e subalternizado, que são os povos originários.

[3]A ‘criação’ de novas identidades históricas, sociais e geoculturais foram fundamentais para a expansão do colonialismo europeu, sendo a ideia de raça como critério fundamental de classificação social e universal utilizada para a consolidação da conquista sobre os povos baseada numa suposta situação ‘natural’ de inferioridade de uns em relação aos outros. (QUIJANO, 2018).

[4]“El sumak kawsay o “buen vivir”: visión ancestral enraizada en la armonía integral entre el ser humano, sus necesidades básicas y la naturaleza,” em WALSH (2009).

[5]No Artigo 1º é citado o “reconocimiento de los pueblos indígenas como sujetos de derechos cuyo ejercicio implica la existência em el país de diversos sistemas normativos”. No seu Art. 56 – Las comunidades, pueblos, y nacionalidades indígenas, el pueblo afroecuatoriano, el pueblo montubio y las comunas forman parte del Estado ecuatoriano, único e indivisible.