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ÁGUA COMO FONTE DE VIDA E CULTURA NAS COMUNIDADES DE PESCADORES ARTESANAIS

 Esse texto foi escrito por Vanessa Martins Lopes, participante do nosso processo de formação continuada e multiplicadora

Vanessa Martins Lopes

No litoral norte de Pernambuco, um tanto afastado da correria da metrópole recifense, encontra-se um povo que na melodia exalada pelas águas estuarinas e marinhas, tem sua vida alicerçada. São várias as comunidades de pescadores dessa área, que tem em comum histórias de vida construídas a partir desse bem tão precioso: a água. Dentre as tantas comunidades de pescadores artesanais enfatizaremos nossa discussão àquelas do município de Goiana: Atapuz, Barra de Catuama, Carne de Vaca e São Lourenço (Figuras 1 e 2) e na relação destas com os recursos hídricos locais. 

Figura 1- Pescador na comunidade Carne de Vaca, Goiana-PE (Foto: Lopes, 2016) 
Figura 2- Comunidade Barra de Catuama, Goiana-PE (Foto: Lopes, 2016) 

O estado do Pernambuco possui uma área litorânea bastante ocupada com a atividade pesqueira o que gera contribuição com a economia do estado. No entanto, o que não se pode esquecer é que por trás dessa abundância de recursos pesqueiros, há um 

elemento primordial e imprescindível: a água, o qual para produzir tanta riqueza deve ser preservada e bem cuidada. Assim, queremos centrar nossa atenção às comunidades tradicionais de pescadores artesanais, mostrando o quão este recurso é precioso para estes povos. 

A água é um bem fundamental para a vida humana e da Terra, sem ela certamente a vida em nosso planeta seria totalmente inviável, sendo assim ela é fonte de vida. Para o pescador essa frase tem bastante peso, pois sua vida está totalmente vinculada à este recurso, de modo que quando este entra em escassez ou não está em condições adequadas, o seu trabalho, e por conseqüência a sua sobrevivência estão postos em risco. 

De modo geral os pescadores enquanto comunidades tradicionais tem um nível de dependência do meio natural e, sobretudo da água, bastante elevado. Essa dependência da natureza leva essas comunidades a construir um rico conhecimento acerca da vegetação, do relevo, dos solos, e da água. No caso dos pescadores esse conhecimento é também bastante amplo incluindo as fases do ciclo hidrológico, e, sobretudo sua dinâmica nos ambientes marinho e fluvial. 

Além de ser fonte de vida, no sentido propriamente dito, enquanto substância essencial para a existência e fornecimento de alimento e renda para o pescador artesanal a água também representa a garantia da manutenção cultural do modo de vida desses povos. Há um sentimento de pertencimento que envolve esse recurso. Para as comunidades pesqueiras a vida está atrelada a significados simbólicos, míticos e culturais que envolvem dentre outras coisas, a água (SALDANHA, 2005). 

Diegues (2007) destaca que grande parte das populações tradicionais vive à beira de rios, lagos, igarapés e à beira-mar, e isso explica os valores atribuídos às águas. Tais valores são bem distintos daqueles utilizados pelas sociedades urbano-industriais. Para as sociedades tradicionais a água, faz parte do território e do modo de vida, está vinculada às suas identidades. Já nas sociedades modernas a água, como um bem de consumo é desterritorializada, com os quais as populações urbanas têm pouco ou nenhum contato. Ainda segundo o autor, os rios, lagos e mares desempenham um papel fundamental para a produção e reprodução social e simbólica do modo de vida das populações que deles dependem. 

Assim, ser pescador artesanal é estabelecer relações de pertencimento com o mar e suas águas e tecer uma comunhão com esse recurso ecológico. Há um sentimento de irmandade com as águas marítimas e estuarinas. Essa afinidade com o meio e as percepções ambientais, traduzem o conhecimento e a familiaridade que as comunidades pesqueiras desenvolveram ao longo do tempo com o ambiente em que praticam a pesca. Essa variedade de práticas assegura a reprodução do grupo possibilitando a construção de uma cultura integrada à natureza e formas apropriadas de manejo (RAMALHO, 2004; SALDANHA, 2005). 

A água é um dos principais elementos dos ambientes costeiros e estuarinos, e suas características físico-químicas são determinantes na dinâmica ambiental local. No estuário, há uma convergência de fluxos hídricos fluviais e marinhos, com características geoquímicas bastante distintas, e tal fato é reconhecido pelos pescadores por exercer forte influência na prática da pesca. 

Os pescadores do litoral norte de Pernambuco reconhecem diferenças na cor e salinidade da água, bem como na hidrodinâmica que ocorre de maneira distinta no ambiente marinho e estuarino. À respeito da hidrodinâmica distinguem diversos tipos de marés correlacionando-as às fases lunares e estações do ano. 

É importante destacar que grande parte da diversidade biológica coexiste com as sociedades humanas há milhares de anos, dessa forma, é possível intuir que essas comunidades representem a possibilidade de existência das “sociedades sustentáveis” (SALDANHA, 2005). Assim sendo, valorizar essas comunidades tradicionais de pescadores que possuem uma relação intima com os recursos ambientais e em especial a água, é uma forma também de preservar esse tão precioso recurso natural e imprescindível a existência humana. 

No entanto, os recursos hídricos vêm sofrendo cada vez mais com as atividades humanas que vem gerando inúmeros impactos ambientais negativos. No litoral norte, a carcinicultura é uma atividade expressiva (Figura 3), e os pescadores relatam que a área sofre com os impactos decorrentes dessa atividade. Os pescadores afirmam que “o viveiro de camarão lançou veneno e deixou áreas de mangue morto”, e “apesar de ter sido bom pelo emprego, foi ruim porque os produto químico como o cloro, começou a matar os caranguejo e as ostra” e enfatizam que “o viveiro vem acabando com a pesca (…) a poluição do viveiro joga tudo para o mar, o produto químico”. 

Figura 3- Carcinicultura no litoral de Goiana- PE (Fonte: Google Earth) 

Segundo Pernambuco (2003 apud Sousa et al., 2017) dentre os principais problemas decorrentes das atividades de carcinicultura no litoral norte pernambucano estão a devastação do mangue para implantação/ ampliação da infra-estrutura desses empreendimentos, bloqueio do fluxo de água salgada, nos trechos isolados com a construção das vias de acesso e como resultado, a vegetação é suprimida em detrimento da instalação dos viveiros o que interfere na redução de organismos vivos desse sistema ecológico. 

A poluição dos recursos hídricos decorrente de outras atividades também é um problema observado: “a poluição chega no mar através do rio de água doce”; “a pesca 

diminuiu porque o rio é muito explorado, é remédio, poluição, aí o rio, os braço de rio vai ficando fraco”. 

Além disso, avaliam a água do rio como sendo suja e poluída, enquanto a do mar é limpa, considerando desta forma o mar como uma espécie de “purificador”: “o mar leva toda sujeira e depois traz (a água) limpa”. Silva (2000) também discute sobre essa visão dos pescadores, ao afirmar que o sal presente na água, sendo considerado uma substancia sagrada, reforça uma noção de pureza que é capaz de acabar com a poluição a qual o mar é submetido. Assim, a água do mar graças aos seus componentes tem a capacidade de impor suas propriedades a outras variedades de água. 

A importância do rio (estuário) e do mar é enfatizada pelos pescadores: “no rio entra várias espécies para reproduzir (…) o rio é como se fosse um tanque ou reservatório para ele reproduzir”, “isso ai é uma das riqueza que o Senhor deixou na vida de todos nós. É uma riqueza maior. O mar é mais rico que a terra, para o pescador. O mar sustenta milhões de pescador, tem mais qualidade de pescado… o petróleo é de dentro do mar. Que riqueza tem o mar!” 

Demonstram ainda possuir preocupação com esses recursos, pois afirmam que retiram lixo do mar “porque prejudica a gente mais tarde, aquilo ali polui”, temos que ter “cuidado em preservar o que estamos pegando, o que estamos destruindo hoje pode faltar amanha”. 

Através dessa breve discussão podemos ver a visão do pescador acerca dos recursos hídricos e a sua importância para a manutenção tanto do ponto de vista socioeconômico como cultural dessas comunidades. Preservar o modo de vida desses povos é também proteger o meio ambiente e a água. 

REFERÊNCIAS 

DIEGUES, A. C. S. Água e Cultura nas Populações Tradicionais Brasileiras. In: I Encontro Internacional: Governança da Água, São Paulo, nov. 2007. 

RAMALHO, C. O mundo das águas e seus laços de pertencimento. Raízes, Campina Grande, v. 23, n. 01-02, p. 62–72, jan./dez. 2004. 

SALDANHA, I. R. R. Espaços, recursos e conhecimento tradicional dos pescadores de manjuba (Anchoviella lepidentostole) em Iguape/SP. 2005. 179f. Dissertação (Mestrado em Ciência Ambiental)- Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. 

SILVA, Gláucia Oliveira da. Água, Vida e Pensamento: um estudo de cosmovisão entre trabalhadores da pesca. In: Imagem das Águas. São Paulo: Hucitec: NUPAUBUSP, p. 27-38, 2000. 

SOUSA, Adeilton Marcelino Vidal de, et al. Problemas e conflitos socioambientais no litoral do Município de Goiana, Pernambuco. Revista Brasileira de Geografia Física, v.10, n.06, p.1934-1947, 2017.