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A luta dos movimentos sociais. Um bem para a humanidade

Foi um momento histórico – como definiu Ignacio Ramonet, destacando que algo está mudando na Igreja, e está mudando “na direção certa” – aquele que teve como protagonistas os mais de 100 delegados de organizações populares de todo o mundo, que se reuniram em Roma para o encontro organizado pelo Pontifício Conselho Justiça e Paz, pela Pontifícia Academia das Ciências Sociais e por expoentes dos próprios movimentos, com o apoio explícito do Papa Francisco.

A reportagem é de Claudia Fanti, publicada na revista Adista Notizie, n. 39, 08-11-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Um momento histórico, porque nunca antes tinha ocorrido no Vaticano e com o aval do pontífice uma assembleia que pode ser considerada como uma espécie de Fórum Social Mundial, convocado com o objetivo específico de identificar as causas estruturais da exclusão e os modos para combatê-las, traçando novos caminhos de inclusão social, a partir de três grandes temáticas: Pão (trabalhadores da economia informal, jovens precários e nova problemática do mundo do trabalho); Terra (agricultores, problemática ambiental e soberania alimentar, agricultura); Casa(assentamentos informais e problemática das periferias urbanas).

Um encontro entendido como uma grande experiência de diálogo, ponto de partida do processo de construção de uma espécie de coordenação das organizações populares, com o apoio da Igreja, como afirmou o cardeal Peter Turkson, presidente do Pontifício Conselho Justiça e Paz, introduzindo os trabalhos.

Um encontro, explicou o cardeal, que não pode deixar de se referir ao ensinamento de João XXIII, que “queria que a Igreja tivesse as janelas escancaradas para o mundo”, na convicção de que “não há nada de genuinamente humano que não encontre eco” no coração dos discípulos de Cristo.

E, à distância de quase 50 anos do encerramento do Concílio, “esse – destacou Turkson – é o motivo principal pelo qual convidamos vocês aqui”, respondendo à exortação dirigida pelo papa à Igreja e ao mundo todo para ouvir o grito dos pobres e dos excluídos, que devem ser, afirmou o cardeal, “não simples e passivos destinatários de esmolas alheias”, mas artífices da própria vida, protagonistas da busca de uma vida mais digna e de um modelo diferente de desenvolvimento.

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Um protagonismo do qual os representantes dos movimentos presentes certamente deram grande prova, contando as suas experiências de luta e de libertação, com base no programa do primeiro dia dos trabalhos, destinado a focar a realidade de exclusão através dos testemunhos dos participantes, segundo o método, próprio da teologia latino-americana, do ver-julgar-agir.

Portanto, quem tomou a palavra foram os/as representantes do povo dos excluídos, começando pela chilena Luz Francisca Rodríguez, da Via Campesina Internacional, que expressou todo o orgulho da identidade camponesa, da missão – a mais nobre que há – de garantir alimentos saudáveis para toda a humanidade, protegendo, ao mesmo tempo, a Mãe Terra.

Mas também denunciando o avanço desenfreado do capital nos campos; a falta de políticas agrícolas adequadas por parte dos governos; o desprezo em relação aos conhecimentos e às culturas camponesas; o papel de uma ciência a serviço do capital, disposta até a arriscar a vida, por exemplo através da imposição das culturas transgênicas.

E não se podia falar de Terra, de Pão e de Moradia sem abordar o ponto nodal da emergência ambiental e climática, “um problema – destacou o especialista em mudanças climáticas Veerabhadran Ramanathan – que se transformará em breve em um desastre”.

Para resolvê-lo, de acordo com Ramanathan, é preciso fazer mudanças profundas na nossa atitude em relação à natureza e aos outros, em uma mobilização que não pode abrir mão da ajuda dos líderes religiosos. É um problema, no entanto, que põe em causa a justiça, já que, como ele evidenciou, os três bilhões de pobres que contribuem com menos de 5% para as emissões de gases de efeito estufa são também aqueles que vão pagar mais pelas consequências do aquecimento global.

E quem indicou os verdadeiros culpados foi Silvia Ribeiro, do ETC Group, lembrando que o 1% mais rico da humanidade controla quase 50% da riqueza global e que 70% da população mundial possuem menos do que 3% das riquezas.

“Os especialistas chamam de Antropoceno a fase planetária atual, para destacar o impacto da humanidade sobre a vida da Terra. Eu não concordo”, concluiu. “A era atual é a era da Plutocracia, em que 85 bilionários, sozinhos, consomem os mesmos recursos que a metade da população mundial.”

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O segundo dia dos trabalhos teve o seu ápice no encontro com o Papa Francisco, que reconheceu o protagonismo dos pobres, que, destacou, não são apenas aqueles que sofrem a injustiça, mas também aqueles que lutam contra a injustiça, que não esperam passivamente pelas ajudas das organizações internacionais, que não esperam dos outros soluções que nunca chegam.

Esse mostrou, destacou, expressa o desejo concreto em relação àqueles “direitos sagrados” que devem ser garantidos a todos: terra, moradia, trabalho. E àqueles que dizem que “o papa é comunista”, não se pode deixar de lembrar que “este é o centro do Evangelho”.

No início, disse o papa, detendo-se sobre o primeiro desses “direitos sagrados”, Deus criou o ser humano como guardião da criação. Uma tarefa que foi traído com a apropriação das terras, com o desmatamento, com a apropriação das fontes de água, com a transformação dos alimentos em mercadoria.

Contra tudo isso, o papa declarou enfaticamente que “a fome é um crime”, “a alimentação é um direito inalienável”, “a reforma agrária, além de uma necessidade política, é uma obrigação moral”.

Quanto à moradia, o segundo dos sagrados direitos, lembrou que as cidades que conhecemos, no mesmo momento em que oferecem todos os serviços possíveis a uma minoria rica, negam um teto a milhares de habitantes, chamados elegantemente de “pessoas em situação de rua”: é incrível – observou o papa – como proliferam os eufemismos no mundo da injustiça. E como, por trás de todo eufemismo, sempre se esconde um crime. Basta pensar nas tristes imagens dos despejos forçados, tão semelhantes a “imagens de guerra”.

Por fim, o trabalho: “Não existe pior pobreza material do que a que não permite ganhar-se o pão”, como consequência de um sistema econômico que coloca os interesses privados acima da pessoa e da humanidade, e como expressão de uma cultura do descarte que transforma o ser humano em um bem de consumo, em nome “de um sistema que coloca no centro o deus dinheiro”.

Uma agressão à qual muitos respondem reinventando uma ocupação no âmbito da economia popular e do trabalho comunitário, e isso, disse o papa, “não é só trabalho, é poesia”.

E, por fim, uma exortação aos movimentos populares para que continuem se organizando, revitalizando as nossas democracias, de modo que não haja mais nenhum agricultor sem terra, nenhuma família sem moradia, nenhum trabalhador sem direitos.

“Você tem os pés no barro e as mãos na carne. Sem a sua presença – disse – as boas propostas e projetos que muitas vezes escutamos nas conferências internacionais ficam no reino das ideias”.

“Sigam com a luta de vocês, porque é como uma bênção de humanidade.”

E, se um dos grandes desafios dos movimentos populares, é, como evidenciou Margaret Archer, presidente daPontifícia Academia das Ciências Sociais, a de se traduzir em uma “forma legítima de governo”, segundo o princípio de “uma democracia participativa que transmita de baixo para cima as exigências dos pobres”, ninguém era mais indicado do que Evo Morales, líder cocaleiro que se tornou presidente da Bolívia, para abordar a questão.

E foi com o seu relato da experiência de refundação da Bolívia que se concluiu o segundo dia dos trabalhos, destacando a necessidade de que os movimentos passam da fase de resistência à da apropriação do poder político, da luta social à luta eleitoral, em nome de uma democracia que represente os interesses do povo e não do mercado, e que seja dominada não pela lógica da maioria e da minoria, mas por um processo decisional fundamentado no consenso.

Mas, se o discurso do papa foi muito apreciado, também não faltaram críticas à instituição eclesiástica: o papel por ela desempenhado no passado, por exemplo, em relação aos povos indígenas, e no presente, por exemplo, em relação ao apoio prestado ao golpe de Estado em Honduras, sobre cujas consequências se concentrou uma apaixonada carta entregue ao Papa Francisco pelo Copinh (Consejo de Organizaciones Populares e Indígenas de Honduras) e lida na plenária pela dirigente Berta Cáceres: “Queremos que em Honduras – lê-se na carta – renasça uma Igreja comprometida com os mais empobrecidos e as mais empobrecidas, como desejavam os nossos santos e os nossos mártires, do Pe. Guadalupe Carney a Dom Romero, não com cardeais que concedem a sua bênção a golpes de Estado e a sistemas de poder que perseguem aqueles que percorrem o caminho de liberação dentro da própria Igreja”.

A referência é claramente ao cardeal Rodríguez Maradiaga, apelidado pelo seu povo, na época do golpe, de “cardeal golpista” ou “cardeMal”, pelo seu aberto apoio ao regime golpista, e depois escolhido pelo Papa Francisco para presidir o grupo de cardeais encarregado de elaborar um projeto de reforma da Cúria.

Agir!

O último dia dos trabalhos se centrou na elaboração e na discussão dos documentos finais do encontro, os uso interno, assim como a Declaração final do Encontro dos Movimentos Populares.

Também não faltou uma síntese de todo o debate realizado no último dia, confiada a João Pedro Stedile, líder doMovimento dos Sem-Terra, e a Paola Estrada, da Alba dei Movimenti, e articulada em torno de três âmbitos temáticos da terra, do trabalho e da moradia.

Assim, em relação à Terra, a proclamação “nenhum agricultor sem terra” é posto ao lado de “nenhum povo sem o seu território”: os movimentos populares são chamados a lutar por uma Reforma Agrária Popular, integral, democrática, centrada na soberania alimentar, no acesso universal à água, no controle das sementes, na agroecologia, na produção de alimentos saudáveis para todo o povo.

E, depois, desenvolvendo o princípio “nenhum trabalhador sem direitos”, é preciso lutar para que todos tenham direito a um trabalho digno e a uma renda que garanta uma vida digna, para que a todos sejam reconhecidos os direitos do trabalho e para que todos possam encontrar trabalho nos seus próprios locais de vida, sem serem forçados a emigrar.

Mas os movimentos também são chamados a lutar contra toda forma de discriminação e toda forma de escravidão, e a denunciar a subordinação de Estados, governos e sindicatos aos interesses das transnacionais.

Com base no princípio “nenhuma família sem uma moradia digna”, os movimentos se comprometem, dentre outras coisas, a transformar as periferias degradadas em espaços comunitários de solidariedade e de bem viver, a combater a especulação financeira e imobiliária, a promover processos de autogestão cooperativa, a impedir qualquer despejo devido à falta de pagamento do aluguel ou de uma hipoteca, a lutar pelo direito de retorno de todas as populações deslocadas, a defender ocupações coletivas de prédios e de terrenos inutilizados para resolver o problema da moradia.

Além desses, outros compromissos foram propostos pelos representantes dos movimentos, como a criação de uma rede de solidariedade que permita a mobilização contra toda forma de injustiça e de perseguição em qualquer país do mundo, a colaboração com todas as tradições religiosas para conscientizar o povo sobre a necessidade da organização, o recurso ao ensinamento do Papa Francisco para difundir entre os povos a exigência de lutar pelas mudanças necessárias no mundo, a promoção de novos modos de consumo e de novos estilos de vida, de maneira que, destacou Stedile, “nenhum trabalhador busque o sonho de se tornar um pequeno burguês”.

Por fim, a ênfase dos delegados foi posta sobre a necessidade de continuar reunindo os setores organizados em luta pela terra, pelo trabalho e pela moradia, de criar uma plataforma de comunicação entre os participantes para a promoção de ações comuns, de organizar um encontro dos movimentos ainda mais amplo e mais articulado, de manter um diálogo contínuo com o Papa Francisco em vista da criação de uma instância de colaboração permanente.

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/537081–a-luta-dos-movimentos-faz-bem-para-a-humanidade

 

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