Notícias

A Igreja e o mundo na encruzilhada

A Igreja e o mundo na encruzilhada: “Ou mudamos ou morremos”. Entrevista com Leonardo Boff

Uma vida inteira a serviço da causa da libertação: a dos pobres e a do “grande pobre” que é o nosso planeta devastado e ferido. É o seu duplo – e conjunto – grito, de fato, que ocupa o centro da reflexão deLeonardo Boff, um dos pais fundadores dateologia da libertação e maior expoente do novo paradigma ecoteológico, isto é, daquele percurso que se desenvolve na escuta do novo relato sagrado transmitido pela ciência, com a sua revelação da natureza profundamente holística e relacional do cosmos (um caminho de busca do qual os livros Ecologia: Grito da Terra, Grito dos Pobres e Tao da Libertaçãorepresentam, indiscutivelmente, as expressões mais altas, mas que também é possível acompanhar em muitas das suas intervenções semanais.

A reportagem é de Claudia Fanti, publicada no sítio Adista, 17-10-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Uma reflexão, a de Boff, que, na atenta escuta da profecia contida na própria voz do universo, leva enormemente a sério as muitas ameaças de destruição lançadas contra Gaia, o planeta vivo que é a nossa casa comum, mas, ao mesmo tempo, é atravessada por um poderoso sopro de esperança: a esperança de que a evolução seja moldada de tal modo que convirja em níveis de complexidade e de autoconsciência cada vez maiores e que, portanto, o caos atual seja gerador de novas possibilidades, o anúncio de um nível mais elevado na história do ser humano e do planeta daquela única entidade indivisível Terra-humanidade que os astronautas captaram por primeiro, com emoção e reverência, olhando para o nosso planeta azul e branco do espaço externo. De modo que o cenário atual, embora tão dramático, não seria uma tragédia, mas uma crise, uma crise que põe à prova, purifica e empurra para a mudança, anunciando um novo início para a aventura humana.

Disso e de muito mais falamos com Leonardo Boff, em visita à Itália para um ciclo de encontros, a partir das perspectivas da Igreja sob o pontificado de Francisco, sobre o qual o teólogo brasileiro, um dos mais duramente perseguidos pelo Vaticano, apostou desde a sua nomeação, considerando-o como a expressão de um novo projeto de mundo e de um novo projeto de Igreja.

Eis a entrevista.

Qual é a sua leitura da atual fase da Igreja?

Eu acho que o Papa Francisco representa um projeto de mundo e um projeto de Igreja. Ele representa um projeto de mundo que é antitético com a palavra de ordem imperial “um só mundo, um só império”, à qual a encíclica Laudato si’responde com a sua proposta de “um só mundo e um só projeto coletivo”, expressando a possibilidade de diálogo, de encontro entre os povos, de renúncia ao uso da violência como instrumento para a resolução dos conflitos (porque não basta ser a favor da paz; também é preciso ser contra a guerra). E ele representa um projeto de Igreja, que pode ser remetido a Francisco de Assis, caracterizado pela revolução da ternura, da misericórdia, da proximidade aos seres humanos. Um projeto cujas opções de base não são dadas, fundamentalmente, pela doutrina, mas pelo encontro pessoal, seja com Cristo, seja com as pessoas.

Trata-se de uma visão de Igreja absolutamente diferente da de João Paulo II e de Bento XVI, que concebiam a Igreja como uma fortaleza assediada por inimigos, contra os quais era preciso se defender: é a visão de uma Igreja como casa aberta, hospital de campanha, comprometida em acolher a todos, independentemente das suas conotações morais, com misericórdia e com compreensão, resgatando, com isso, a tradição de Jesus, que é anterior aos Evangelhos e que é feita de amor incondicional. Eu acho que isso representa uma novidade na Igreja, uma ruptura. Roma não gosta dessa palavra. Mas é uma realidade: o Papa Francisco despaganizou a figura do papa, considerado até agora como um faraó (é significativo que ele tenha renunciado à mozeta, o símbolo do poder absoluto do imperador). E ele afirmou que guia a a Igreja no amor e não no poder. Com o poder, o amor desaparece. Quando há amor, há proximidade, compreensão, misericórdia. Essa, para mim, é a grande ruptura feita por esse papa.

E o que está se movendo ao redor do papa?

Papa Francisco se encontra diante de dois tipos de oposição. O primeiro é o da velha cristandade de cultura europeia, com todos os símbolos do poder sagrado. O papa se despojou dos símbolos do poder, foi morar em Santa Marta, entra na fila para comer (assim, como ele disse, brincando, para uma amiga comum, Clelia Luro, é mais difícil envenená-lo!). O segundo tipo é dado pela oposição secular daqueles que, especialmente nos EUA, não querem saber nada de diálogo ou de ecologia, casando-se com a perspectiva da dominação ocidental, a da atual globalização, que, na realidade, é a ocidentalização do mundo, de acordo com o estilo de vida norte-americano, uma espécie de “hamburguerização” de todas as culturas. O papa inaugura outro modelo de cristão.

Eu acho que a sua visão se centra na consciência de que Jesus não veio para criar uma nova religião, mas veio para ensinar a viver. A viver no amor e na misericórdia. O núcleo da mensagem de Jesus, a sua intenção original, é a união do “Pai nosso” e do “pão nosso”. O Pai nosso, Abbá, é um voo para o lato, a irreprimível fome de transcendência, e o pão nosso exprime a fome real de milhões de pessoas, aquela que é preciso saciar para que tenha sentido falar de Pai nosso e de Reino de Deus . É a essa mensagem que se opõem aqueles que querem um cristianismo doutrinário, dogmático, sistematizado, todo disciplina, ordem e poder.

A ruptura de que você fala se expressa principalmente em um plano simbólico. No campo da doutrina, porém, não se veem nem se preveem muitos novidades…

Eu acho que, também nesse campo, o papa fez uma ruptura. Em primeiro lugar, por exemplo, as questões ligadas com a moral familiar eram tabu: ninguém podia falar sobre isso, nem os bispos, nem os teólogos. E um dos critérios para as nomeações episcopais era justamente a ausência de qualquer crítica relacionada com o celibato ou com a doutrina moral. A novidade é que Francisco abriu o debate sobre esses temas: nunca tinha acontecido que um papa consultasse as bases. Além disso, ele está dando muito valor à colegialidade. Na sua encíclica, por exemplo, ele cita diversos episcopados, até mesmo desprovidos de uma grande tradição teológica, como os do Paraguai ou daPatagônia.

E é um fato extremamente singular e revolucionário que ele tenha convidado para Roma os representantes dosmovimentos populares de todo o mundo – reunindo-se, depois, novamente com eles em Santa Cruz, na Bolívia – para analisar as causas dos atuais sofrimentos: ele não chamou sociólogos, cientistas políticos, os cientistas, mas aqueles que sentem a dor na própria pele. E destacou dois aspectos essenciais: a centralidade da terra, do trabalho e da casa, e o fato de que não devemos esperar que as mudanças venham de cima, porque, explicou o papa, a salvação vem de baixo: são os pobres organizados os verdadeiros profetas da mudança. Tudo isso era inimaginável em Romaantes do Papa Francisco.

Não há o risco de que tudo isso acabe com o próximo pontificado?

O risco existe. Mas a minha tese é de que, como na Europa vivem apenas 25% dos católicos, e que o restante se encontra no Terceiro Mundo, esse papa vai inaugurar uma genealogia de papas do Sul do mundo, da África, da Ásiae da América Latina, isto é, provenientes de outros ambientes culturais e eclesiais, mais livres do peso das tradições e mais ligados às experiências populares de luta pelos direitos humanos, pela terra, pela dignidade. Eu acho que se fechou o ciclo da Igreja europeia e ocidental, e que começou o de uma Igreja planetária. E agora a Igreja é chamada a se desocidentalizar, a se despatriarcalizar, a se descentralizar.

Como o mundo é um só, eu defendo que os dicastérios deveriam ser colocados em diversas regiões do planeta: o dos direitos humanos na América Latina, o da inculturação na África, o do diálogo inter-religioso na Ásia. E que aqui [em Roma] deve permanecer apenas um pequeno grupo encarregado da administração geral, deixando que tudo ocorra pelo Skype, por teleconferência. Porque a Igreja deve se adequar à nova fase da humanidade. Essa exigência de descentralização é um dos dois pontos que eu destaquei em uma carta que escrevi ao papa. O outro ponto é o pedido de convocação de uma assembleia das religiões, com o objetivo de compreender qual deve ser a contribuição das diversas tradições espirituais para a salvação da vida no planeta e da civilização humana. Mas, primeiro, é preciso realizar uma reforma interna da Igreja.

Nesse campo, no entanto, não se registram muitos passos à frente…

Eu acho que o papa não quis adotar uma abordagem frontal. A esse propósito, eu acho que foi um erro escolher para oSínodo um tema controverso como o da moral familiar. Porque é um tema que divide. São causas universais como a ecologia, a paz, a luta contra a fome e a devastação da biodiversidade que podem unir a Igreja. Esse tema, ao contrário, parece feito especialmente para colocar o papa contra as cordas. O que Francisco está fazendo é conservar a doutrina tradicional, mas abrindo o debate e lançando sinais sobre a possibilidade de que essa doutrina mude. E eu, na carta que lhe escrevi, lhe peço para que ele use em favor dos direitos e da justiça daquele “poder ordinário supremo, pleno, imediato e universal sobre a Igreja” que lhe é reconhecido pelo Código de Direito Canônico.

Mas como isso pode se conciliar com uma dimensão de colegialidade?

O objetivo é a mudança da Igreja. Não bastam as reformas, é preciso de uma verdadeira revolução. A colegialidade é um ótimo instrumento para governar a Igreja, mas não para mudá-la. A função do papa é a de ser o grande protagonista da mudança: ele dispõe dos instrumentos necessários; se quiser, pode usá-los. E talvez será obrigado a fazer isso, para dar a entender aos cardeais rebeldes que o estão desafiando que a Igreja vai ser diferente, porque é chamada a fazer as contas com a nova fase da Terra e da humanidade.

O tempo das nações chegou ao fim. Começa o tempo da humanidade “planetizada”, da casa comum. E, para esse tempo, a Igreja não está preparada. Porque é excessivamente ocidental, excessivamente clerical, excessivamente doutrinária, excessivamente centrada em um paradigma helenístico. O que é necessário é um modelo de uma Igreja verdadeiramente globalizada, uma imensa rede de comunidades que se encarnam em muitas culturas e assumem muitos rostos, e em que o papel do papa é o do peregrino que anima as Igrejas na fé e na esperança, instrumento de comunhão e não de governo, que, ao contrário, deverá ser confiado às Conferências Episcopais nacionais e continentais.

O que é possível esperar do Sínodo sobre a família?

Eu acho que o Sínodo será um fracasso e aumentará a polarização entre as diversas posições. Provavelmente, o papa vai deixar a discussão aberta, porque, se a fechasse, dividiria a Igreja. Eu acho que é necessário incluir as pessoas que são mais tocadas por esses temas, ou seja, os leigos, homens e mulheres. Porque o Sínodo é feito apenas por uma fração clerical e celibatária da Igreja: enquanto não forem envolvidas as pessoas diretamente interessadas, não poderá haver convergência. E uma das reformas que o papa anunciou, mas que até agora não realizou, é justamente a inclusão das mulheres nos centros de tomada de decisão. Não se trata de incrementar a sua participação: ela sempre existe. Trata-se do fato de que sejam elas que decidam. As mulheres na Igreja não contam. E isso apesar de que haja em favor delas três aspectos que são mais fortes do que que os argumentos episcopais: elas nunca traíram Jesus (os homens o fizeram); elas foram as primeiras testemunhas do maior evento da fé, que é a ressurreição; e sem uma mulher não haveria a encarnação. E, se a Igreja nunca levou a sério essa centralidade, as mulheres devem lutar para obtê-la, e nós, teólogos, devemos dar a nossa ajuda.

Uma das fronteiras teológicas mais avançadas é a que está empenhada na tarefa de reformular a fé cristã em uma linguagem que seja mais acessível aos homens e às mulheres contemporâneos e mais compatível com todas as recentes descobertas científicas. Você não acredita que, entre o que aceitamos como verdade científica e o que afirma a doutrina tradicional da Igreja, abriu-se um fosso que corre o risco de ser intransponível?

Eu acho que é necessário traduzir a fé em um novo paradigma, porque a Bíblia e toda a teologia foram elaboradas dentro de um paradigma ocidental que hoje não é mais adequado para as exigências planetárias. E o paradigma que hoje está ganhando mais espaço é o da nova cosmologia. Eu tentei levar adiante essa tarefa no meu livroCristianismo, o mínimo do mínimo (Ed. Vozes, 2011), pensando o cristianismo dentro do processo evolutivo e reformulando a mensagem cristã em uma linguagem que deveria se tornar consciência coletiva, a linguagem cotidiana do novo paradigma. Essa é a grande tarefa que a Igreja inteira é chamada a desempenhar, consciente e colegialmente. Um grande trabalho coletivo de tradução da fé no novo paradigma que vem da física quântica, das ciências da vida e da Terra. É o desafio que eu tentei assumir ao escrever, junto com o cosmólogo Mark Hathaway, o livro O Tao da Libertação: explorando a ecologia da transformação (Ed. Vozes, 2011): um livro que exigiu 13 anos de pesquisa e de reflexão, e que é a tentativa de utilizar essa base científica para repensar o conceito de Deus, de Espírito, de Graça, de Ressurreição.

Qual é a principal mensagem de esperança que a nova cosmologia nos transmite?

Que tudo tem a ver com tudo, em todos os momentos e em todas as circunstâncias: tudo está em relação, como reconheceu o próprio papa na encíclica [Laudato si’]. A matéria não existe, é apenas energia altamente condensada, e todos temos o mesmo caminho e o mesmo destino. E, apesar de todas as crises, todas as dificuldades, todas as devastações, o universo sempre vai se auto-organizando e se autocriando rumo a uma complexidade cada vez maior.Teilhard de Chardin foi profético: existem muitas contradições, passa-se por tanta devastação e, às vezes, parece que o mal prevalece, mas a vida nunca foi destruída. Como destacou Edward Wilson, a vida não é nem material, nem espiritual: a vida é eterna e está imersa no processo da evolução. E é isso que o cristianismo afirma: que tudo está relacionado e que existe um fim bom para a humanidade e para o universo. Em outras palavras, não iremos ao encontro da morte térmica, mas a formas cada vez mais complexas e mais altas.

Porém, a teoria da morte térmica do universo, o cenário em que a expansão acelerada provocaria um universo frio demais para sustentar a vida, é defendida por muitos físicos e cosmólogos…

Eu acho que essa tese foi superada por Ilya Prigogine, que ganhou o Prêmio Nobel de Química pelas suas descobertas sobre as estruturas dissipativas, mostrando como a evolução se realiza no esforço de criar ordem na desordem e a partir da desordem, ou seja, como o caos se revela altamente generativo, transformando-se em um fator de construção de formas cada vez mais altas de complexidade e de ordem. Em contradição com a visão linear própria da física clássica, movemo-nos aqui no campo da física quântica, com o seu progresso por saltos, por acumulação de energia. Hoje, portanto, dispomos das bases científicas para elaborar uma visão que é mais adequada para a mensagem de esperança do cristianismo, a de um universo como corpo da divindade, um universo que não terminará com uma grande catástrofe, mas com um novo céu e uma nova terra, um salto imenso, na linha de Teilhard de Chardin, uma implosão e explosão dentro de Deus. Não outra Terra, mas esta mesma Terra transfigurada. É como a morte humana, que não é o fim da vida, mas um lugar alquímico em que a vida se transforma e passa para outro nível, fora do espaço-tempo, mas permanecendo vida.

À tentativa de articular teologia da libertação e ecologia, você dedicou 30 anos de trabalho: um trabalho realizado por muito, muito tempo em uma solidão quase total, realmente vox clamans in deserto, até que a gravidade da crise ambiental forçou também a teologia latino-americana a assumir a questão entre as suas prioridades. Como você vê a situação agora?

Nos anos 1980, eu tomei consciência da questão ecológica nos seguintes termos: a marca registrada da teologia da libertação é a opção pelos pobres, contra a pobreza e em favor da libertação e da justiça social. E quem é, hoje, o grande pobre? É a Terra! Portanto, dentro da opção pelos pobres, é preciso colocar a Terra, devastada e agredida. Mas é preciso pensar a Terra não segundo o velho paradigma, como algo inerte e inanimado, mas dentro da nova cosmologia, como um superorganismo vivo, como Gaia, segundo a teoria de James Lovelock, como a Mãe Terra, segundo o que reconheceram as próprias Nações Unidas, que proclamaram o dia 22 de abril como Dia Internacional da Mãe Terra.

Então, eu me dediquei, por alguns anos, ao estudo da cosmologia, e daí nasceu o livro Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres (Ed. Ática, 1995). Uma obra que, na época, praticamente não despertou nenhuma reação entre os teólogos, mesmo que, mais tarde, alguns a consideraram ainda mais importante do que o livro Teologia da libertação, de Gustavo Gutiérrez, a obra que marcou o início da teologia da libertação, mas que ainda está ligada ao velho paradigma. Eu acho que a grande maioria dos teólogos da libertação ainda se move dentro do velho paradigma. As dificuldades, é verdade, são muitas, porque é preciso estudar as ciências da vida, a física quântica, a nova antropologia, mas, desse modo, pode-se fazer uma teologia muito melhor do que a outra, e compreender muito mais em profundidade a mensagem cristã. Eu acho que essa é uma tarefa que também vai além da nossa geração: é o caminho que o cristianismo é chamado a percorrer para ser uma boa nova para os novos tempos. Vinho novo, odres novos. Música nova, orelhas novas.

Como você explica que, no Brasil, muitos movimentos populares, embora assumindo a luta contra o aquecimento global, defendem projetos ecologicamente devastadores como o pré-sal, a enorme jazida de petróleo e de gás ao longo da costa brasileira?

É uma contradição ligada aos países em desenvolvimento. Os países do Norte do mundo, de fato, poderiam visar à prosperidade renunciando ao crescimento e aprofundando mais dimensões como a da espiritualidade, da arte etc. Os nossos países, ao contrário, ainda precisam de crescimento, porque o nível de vida dos nossos povos é muito baixo: falta a água, a casa, a eletricidade; é preciso investir em saúde e educação. Assim, no Brasil, há muita atenção para esses temas, enquanto se ignora a problemática ecológica. Existem apenas pequenos grupos de ecologistas. No entanto, o Brasil poderia prescindir totalmente do petróleo, explorando a imensa energia produzida pelo sol. Mas se aponta para um projeto como o pré-sal, que terá um impacto devastador sobre o oceano, em termos de contaminação das águas e de destruição da biodiversidade.

Eu discuti várias vezes com Lula sobre tudo isso, mas, na opinião dele, é suficiente que chova dois dias seguidos, para que tudo floresça novamente. Na realidade, porém, é o sistema global que está em crise e que corre o risco do colapso. Talvez a nossa consciência vai se despertar quando sentirmos na nossa pele as consequências da catástrofe. Como dizia Hegel, o ser humano não aprende nada da história, mas aprende tudo do sofrimento. Embora eu prefira Santo Agostinho, que considerava que eram duas escolas: o sofrimento, que nos dá lições severas, e o amor, que produz alegria e transformação. Eu acho que vamos aprender com o amor e com o sofrimento. Diante de nós, há apenas dois caminhos: ou mudamos ou morremos. Estamos passando por uma grande crise, mas a crise purifica, obriga a mudar de estrada, talvez prepara o terreno para o advento de uma nova civilização centrada na vida humana e na vida da Terra, uma biocivilização, a Terra da boa esperança.

Mas será necessário passar por aquela que já foi definida como a sexta extinção em massa…

Estamos em pleno Antropoceno, a era em que o ser humano – e não um meteorito, nem um cataclismo natural qualquer de dimensões colossais – tornou-se a maior ameaça contra a vida. Edward Wilson calculou que estamos perdendo a cada ano de 20 mil a 100 mil espécies vivas. É realmente a sexta extinção em massa e também poderia afetar uma boa parte da humanidade, especialmente a pobre e sofredora. Nesse caso, caberá aos sobreviventes reorganizar o planeta em novas bases. Mikhail Gorbachev, o coordenador das atividades da Carta da Terra, compara a situação da Terra e da humanidade à de um avião sobre a pista de decolagem: chega um momento crítico em que o avião deve decolar, se não quiser colidir com o fim da pista. E, na opinião dele, já ultrapassamos o ponto crítico, e nós levantamos voo. Mas os seres humanos são surpreendentes e capazes de mudança. A evolução não é linear, procede por saltos, e é possível que a humanidade adquira consciência e dê o salto necessário, abraçando uma nova visão que tenha no centro toda a comunidade de vida, até mesmo as plantas e os animais que são nossos companheiros na casa comum. Afinal, o ser humano tem em si energias divinas, daquele Deus que é soberano e amante da vida, e que não vai permitir que a vida desapareça.

Como você interpreta a atual situação do Brasil? Você acha que o governo de Dilma terá a força para superar a crise?

É uma situação muito crítica. Arrancando da pobreza 40 milhões de brasileiros, o PT cometeu o erro de transformá-los apenas em 40 milhões de consumidores, ignorando aquele trabalho de conscientização necessário para lhes restituir o sentido de cidadania. O consumidor, como se sabe, visa a consumir cada vez mais. E, se não é possível, gera-se um grande mal-estar coletivo. E esse é um erro que é explorado pela oposição. A nossa desgraça é que não há uma alternativa. Ninguém, nas fileiras da oposição, possui autoridade moral e um projeto diferente do neoliberalismo e do alinhamento com os EUA. E, infelizmente, o governo Dilma, abrindo mão das promessas da campanha eleitoral, está descarregando sobre os operários e sobre os aposentados os custos da crise, poupando as grandes empresas e os bancos.

É preciso ter em mente que o Brasil, em virtude dos seus imensos espaços geográficos e das suas grandes riquezas naturais, é um dos lugares do planeta que mais abre o apetito do capital. Estamos em um beco sem saída. Não existe, neste momento, nenhuma solução razoável. A única esperança vem do nascimento de uma grande articulação dos movimentos de base, que recentemente se encontraram com Dilma com o objectivo de criar uma base não parlamentar, mas popular, para enfrentar a ofensiva da oposição, de forma que, sobre tal base, Dilma possa levar adiante os projetos sociais em uma perspectiva realmente educativa, criando uma nova consciência de cidadania. Isso permitiria que o governo avance, talvez à espera de uma nova candidatura de Lula em 2018. Mesmo que, para o PT, seria melhor ficar um pouco de tempo fora do poder, para fazer autocrítica e reformular um projeto de país.

É difícil pensar que Lula possa representar o futuro do Brasil…

Lula imagina o Brasil como uma imensa fábrica de Sul a Norte, em que todos trabalham, consomem, compram casa e carro. Mas se trata de um projeto mais adequado ao século XIX do que ao XXI. Lula é um grande líder, mas a história hoje precisa de outra forma de liderança. E, infelizmente, não há nenhuma figura que expresse essa consciência nova. Na minha opinião, o Brasil é tanto expressão da tragédia da humanidade – basta pensar no assassinato sistemático dos jovens negros (são assassinados 60 por dia) e na devastação da natureza –, quanto laboratório de esperança, promessa de outra forma de habitar o planeta, de acordo com uma perspectiva biorregionalista – a verdadeira alternativa ecológica à globalização homogeneizante – que integra e valoriza os bens e os serviços de cada ecossistema, junto com a sua população e a sua cultura.

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/548247-a-igreja-e-o-mundo-na-encruzilhada-qou-mudamos-ou-morremosq-entrevista-com-leonardo-boff

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

three × 1 =