Mulheres tiram renda dos frutos do Cerrado
Mulheres tiram renda e empoderamento dos frutos do Cerrado
Dia de coleta de baru, fruto do cumbaru, árvore típica do Cerrado brasileiro. Parte nobre e mais nutritiva, a amêndoa será processada e utilizada em diversos produtos
São Paulo – A barraca das mulheres do grupo Baru é uma das mais movimentadas da feira da agricultura familiar, realizada toda sexta-feira na praça Garibaldi Medeiros, região central do município de Anastácio, em Mato Grosso do Sul. Ali os fregueses encontram pasteis de massa caseira, coxinhas de mandioca produzida no assentamento São Manoel – onde vivem as cinco integrantes – e uma linha de castanhas, farinhas, pães, bolos, doces, bombons, sorvetes e outros subprodutos do baru, do coco bocaiúva, do jatobá e pequi.
Típicos do Cerrado, esses frutos são coletados pelo grupo no próprio assentamento ou comprados de outros assentados, que fazem do extrativismo em Anastácio uma fonte de renda. Os frutos são processados e transformados em farinhas e conservas e armazenadas em uma cozinha construída há dois anos, em uma área do assentamento, com recursos obtidos com a venda desses alimentos e de doações. Assim haverá matéria prima para todo o ano, mesmo na época em que não há colheita.
Aos poucos, o mercado vai sendo ampliado, chegando a empreendimentos da economia solidária no município de Bonito e em Campo Grande. “A ideia é poder vender em muitos outros pontos e aumentar os ganhos, hoje em torno de um salário mínimo para cada uma todo mês”, conta dona Maria Lúcia de Morais Lima, agricultora e integrante do grupo. As cascas do baru, porém, já são vendidas para uma empresa de São Paulo, que as utiliza na fabricação de substrato para orquídeas.
Empoderamento
Embora a feira no centro de Anastácio seja semanal, dona Maria Lúcia e suas companheiras têm trabalho diário, para o dia todo, seja na produção para atender aos pedidos, na gestão ou no planejamento de novos produtos e mercados. Mas nem sempre foi assim.
“Antes a gente não tinha renda”, afirma dona Maria Lúcia. Composto por cinco agricultoras, o grupo toma todas as decisões em conjunto. As atividades são planejadas em reunião anual, e toda semana se reúnem para discutir assuntos internos, fazer as contas, dividir o lucro e planejar a semana.
O empoderamento dessas mulheres e a mudança em suas vidas são frutos de uma experiência em que a persistência fez toda a diferença. Em 2009, a Agência de Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural (Agraer), vinculada ao governo do Mato Grosso do Sul, obteve recursos junto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) para capacitar produtores rurais para o processamento e comercialização das castanhas – ou amêndoas – extraídas do fruto da árvore do cumbaru.
Era uma época em que o então Ministério da Ciência e Tecnologia destinava recursos para projetos de desenvolvimento agrícola e extrativista articulados com o desenvolvimento social, estimulando a geração de renda alinhada com a preservação ambiental de biomas como o Cerrado. Segundo maior do país – só perde para a Floresta Amazônica – tem sido engolido pelo avanço do agronegócio, com seus latifúndios que derrubam árvores nativas para estender a monocultura de soja e cana.
Parte nobre do fruto, as amêndoas do baru têm sido cada vez mais valorizadas devido ao valor nutricional. Ricas em proteínas, vitamina E, minerais como o zinco e gorduras insaturadas, ajudam a equilibrar o colesterol, além de fortalecer o organismo contra outras doenças.
O projeto pioneiro começou com a participação de 19 agricultores do assentamento São Manoel, que colhiam e pesavam os frutos, tiravam a polpa, que é usada em ração animal, quebravam o caroço e extraíam a amêndoa. No decorrer dos dois anos da pesquisa, foram desenvolvidos equipamentos, outros adaptados. Houve ainda avaliação da produção de árvores de cumbaru, bem como da relação tempo e produção e da composição nutricional.
Como muitos deles não acreditavam que a pesquisa traria bons resultados, acabaram desistindo. Ficaram apenas as cinco mulheres, que quando começaram a produzir comercialmente, criaram o grupo que batizaram com o nome do fruto. “Tenho comigo que não posso começar e desistir. Temos de insistir para dar certo”, diz dona Maria Lúcia. Deu tão certo que ela e suas companheiras resolveram ampliar a linha de produtos, incluindo os outros frutos do Cerrado.
Cooperativa
O grupo é informal. Para comercializar produtos por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), as mulheres se associaram à Cooperativa dos Produtores Rurais da Região do Pulador de Anastácio (Copran), na qual duas delas participam da gestão.
“Apesar das dificuldades iniciais, elas seguiram firmes no projeto, até o fim, e foram pioneiras no beneficiamento do baru em Anastácio e em todo o estado. Além de emancipação financeira e empoderamento, o trabalho delas trouxe melhorias para a comunidade como um todo”, diz a estudante de Agronomia Mayara Winie de Lima Bissoli, autora da monografia “Coleta e beneficiamento de frutos do cerrado brasileiro: o caso das mulheres agricultoras de Anastácio (MS)”.
O relato da experiência vitoriosa é igualmente bem sucedido: tirou o primeiro lugar na categoria relatos de caso da 3ª Conferência Internacional Agricultura e Alimentação em uma Sociedade Urbanizada (III AgUrb), realizada de 17 a 21 de setembro, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Nesta categoria foram inscritos trabalhos de mais de 30 países, inclusive de pesquisadores com alta titulação.
A conferência foi realizada por pesquisadores, acadêmicos, organizações da sociedade civil e formuladores de políticas de diversos países, que trabalham para colocar a questão alimentar no cerne das problemáticas que desafiam a humanidade, como as mudanças climáticas e suas repercussões sobre a água e a biodiversidade, a busca por fontes alternativas de energia e as transformações demográficas.
Assentada da reforma agrária em São Manoel assim como as mulheres do grupo Baru, Mayara estuda no Instituto Educar, localizado município de Pontão (RS). A entidade tem parceria com a Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), uma das 18 universidades criadas no Brasil durante a expansão da rede federal de ensino superior promovida pelo então ministro da Educação Fernando Haddad, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
O convênio foi firmado pela UFFS por meio do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
“O baru tornou-se mais conhecido e valorizado na região, trazendo oportunidades de trabalho e renda também para outras pessoas. Foram criadas redes de comercialização e de preservação de árvores de cumbaru, que antes eram derrubadas pelos agricultores. Essa experiência local contribui para o empoderamento feminino, o fortalecimento das experiências associativas, a preservação ambiental, a valorização dos produtos do Cerrado e para a construção de sistemas alimentares mais sustentáveis”, diz Mayara.
Inspiração
Orientador e coautor do trabalho, o agrônomo e doutorando em Desenvolvimento Rural na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Vanderlei Franck Thies não tem dúvidas de que, além da disciplina de Mayara, o diferencial do relato vencedor é o trabalho do grupo Baru.
“Uma experiência extraordinariamente interessante de ser analisada, ser difundida, de ser divulgada, porque o trabalho dessas mulheres no assentamento e no Cerrado brasileiro, nas condições mais adversas que elas enfrentam, é algo extremamente positivo e inspirador. Uma alegria que a gente sente é poder dar visibilidade para essa experiência”.
Fonte: https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2018/10/mulheres-tiram-renda-e-empoderamento-dos-frutos-do-cerrado