Bem viver X viver melhor
Bem viver X viver melhor: O desafio indígena na América Latina
Para Xavier Albó, o dilema é conciliar desenvolvimento com respeito ao meio ambiente e à identidade dos povos originários
Xavier Albó no IHU Ideias Foto: Leslie Chaves |
Ao longo da história mundial, desde as primeiras missões em busca de conquistas de territórios, muitas batalhas foram travadas com os chamados povos originários das regiões cobiçadas. Na América Latina os primeiros habitantes foram os diversos povos indígenas distribuídos pela região. Apesar das diferenças existentes entre as várias etnias indígenas latinas, elas têm um ponto em comum: sua visão sobre como viver com seus semelhantes e com a natureza. De acordo com Xavier Albó, teólogo, doutor em Antropologia, Lingüística e Filosofia que se dedica a estudar os conflitos em territórios indígenas na região, nessas lutas, além do objetivo de tomar um determinado espaço, frequentemente a extração dos recursos naturais presentes nesses ambientes está em jogo. Reflete-se aí o choque de concepções entre a filosofia de vida indígena com a lógica da expansão e desenvolvimento capitalista. “O sentido de progresso para os indígenas é a promoção do ‘bem viver’, isto é, do viver bem juntos. Para estes povos originários, o ‘bem viver’ se refere às relações sociais, que têm um peso muito importante para eles. Eles se baseiam no ‘bem viver’ em detrimento do ‘viver melhor’, que se fundamenta principalmente no progresso desenvolvimentista”, explica.
Segundo o pesquisador, os indígenas acreditam que não é possível viver melhor sacrificando outros que vivem pior. Para estes povos o “bem Viver” é o equilíbrio entre os seres humanos e destes com os elementos da vida. “Trata-se de um fenômeno vital cósmico. Convivência com e entre todos os seres humanos, com a mãe terra e todos os elementos do cosmos mais amplamente”, ressalta. O tema foi abordado por Xavier Albó em duas conferências proferidas na última quinta-feira, 27-08-2015, na Unisinos. A primeira, “Bem-Viver. Impactos na América Latina”, fez parte do IHU ideias, e a segunda “O grande desafio dos indígenas nos países andinos: seus direitos sobre recursos naturais”, fechou a programação do I Colóquio Discente de Estudos Históricos Latino-Americanos – I CEHLA, promoção do Programa de Pós-graduação em História.
Albó acredita que é possível e necessária a aproximação com a filosofia indígena do “bem viver” e a abertura para o que é diverso na busca de uma sociedade mais justa. “A ideia do Yin e Yang representa como somos capazes de convivermos com as diferenças. Tudo tem que ser pluri e para que tenha sentido deve ser inter, de inter-relação entre todos, para que as coisas avancem. O poder também precisa ser compartilhado para se chegar ao pluralismo e consequentemente ao ‘bem viver’”, aponta.
As questões políticas para se colocar em prática esse projeto de vida em âmbito mais amplo são delicadas. Os interesses econômicos têm sido levados mais em conta nas decisões e ações dos governantes, mesmo diante da chegada ao poder de diversos governos de esquerda e aparentemente vinculados às causas indígenas. O resultado tem sido a abertura para o capital estrangeiro através da entrada de multinacionais extrativistas determinadas a dilapidar os recursos naturais em nome do lucro. “Um fenômeno bastante comum é que muitos líderes e partidos novos, antes de chegarem ao poder, defendem posições mais próximas aos movimentos indígenas, e se constituem, inclusive, em seus fortes aliados; mas depois, uma vez no poder, mais cedo ou mais tarde se deslocam, em grande parte, devido a sua posição pragmática em relação a atividades extrativas, que podem produzir rendimentos muito elevados, seja para o país ou para outros setores econômicos e sociais mais influentes no governo; ou simplesmente para eles também lucrarem uma parte, porque ‘o poder corrompe’”, constata o pesquisador.
Uma iniciativa apontada por Albó como tentativa de combater a política do lucro a qualquer custo é a recente Encíclica do Papa Francisco. Para o pesquisador a “Laudato Si’ traz nas suas entrelinhas a questão do bem viver quando alerta para os problemas ambientais e a responsabilidade da sociedade em encontrar soluções para preservar a natureza e promover justiça social. Ainda aponta que “essa Encíclica também é inédita porque com palavras que todos entendem, traz um assunto que a maioria não quer saber. Outros documentos desse tipo até então diziam coisas que todos sabiam, mas com palavras que ninguém entende”, chama a atenção.
As constantes lutas dos indígenas por seus territórios e os problemas sociais, como a fome, advindos com as políticas desenvolvimentistas e abertura às multinacionais extrativistas, têm provocado a urbanização desses povos. Fenômeno que agrava ainda mais a situação desses que foram os primeiros habitantes de diversas terras e atualmente estão perdendo seu espaço de direito. “Muitos índios hoje estão na cidade e isso é muito preocupante porque, se eles deixam de ter territórios, seus direitos também são feridos. Alguns deles têm dois ou três domicílios, ficam transitando para não perder o direito ao território. Eles se transferem para as cidades por questões laborais e acabam passando por dificuldades, por outro lado, também ampliam seus horizontes de luta ao se relacionarem com o ambiente urbano”, analisa o pesquisador.
Diante desse cenário, é possível depreender que a humanidade está longe de concretizar o ideal indígena, embasado no respeito mútuo e ao meio ambiente. Para Albó “precisamos ver a terra como um grande organismo vivo, conforme nos diz Leonardo Boff, como parte de nós. Não podemos ser humanocêntricos pensando que a natureza deve ser protegida só para não perdermos nosso lar. A busca da Terra Sem Males representa bem o que é a ideia do bem viver para os indígenas, no caso aqui os Guarani que têm essa mitologia. Essa Terra de que eles falam e buscam incessantemente simboliza a plenitude da relação dos humanos com Deus e a natureza”.
Xavier Albó é graduado em Teologia pela Facultad Borja, de Barcelona, e pela Loyola University, de Chicago. Tem doutorado em Lingüística e Antropologia pela Universidade de Cornell e em Filosofia pela Universidad Católica del Ecuador. É co-fundador do Centro de Investigação e Promoção do Campesinato – CIPCA, Bolívia.
Por Leslie Chaves
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