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Laudato Si’ e o resgate de uma relação integral entre Deus e a criação

“O antropocentrismo ensimesmado, onde o ser humano se compreende separado das relações com Deus e com a natureza, é, sem dúvida, a causa da crise ecológica”, afirma o reitor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio.

A abordagem ecológica da Carta Encíclica Laudato Si’ sobre o cuidado da casa comum, deve ser compreendida para além de uma reflexão sobre a urgência de enfrentar as mudanças climáticas e a crise ambiental. Ao colocar oconceito de ecologia integral como mote que conduz a leitura da Encíclica, “o Papa resgata a interpretação hermenêutica da tradição bíblica manifestativa, onde as relações Deus, homem e natureza estão profundamente imbricadas”, ressalta Josafá Carlos de Siqueira, ao comentar a Laudato Si’, em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.

Com esse conceito, pontua, “o Papa Francisco resgata a visão sistêmica da casa comum, onde não se pode separar o teológico, o antropológico e o cosmológico”.

Na interpretação do jesuíta formado em Biologia, a Encíclica do Papa Francisco “tocou num problema de fundo”, ao assinalar que a crise ecológica é, na verdade, uma crise antropológica. “Não existe crise na natureza, e sim no ser humano, que está perdendo a capacidade de administrar aquilo que foi colocado em suas mãos”, pontua. Ao abordar a questão ecológica a partir dessa perspectiva, foi “natural” o Papa ter “dado mais peso” às teses daqueles que chamam atenção para as implicações das mudanças climáticas, porque estes “estão mais de acordo com o plano de Deus para com a Criação”, ao contrário dos céticos, que não alimentam esperanças de que “as coisas podem mudar”. Contudo, salienta, “o Papa critica algumas teses de movimentos ambientalistas, apoiados de maneira muito radical numa compreensão biocentrista da Criação”.

Politicamente, afirma, a Laudato Si’ possivelmente ajudará a “romper o pessimismo e as frustrações” das conferências climáticas que tiveram resultados pífios. “Agora é momento de ler e conhecer em mais detalhes as riquezas das reflexões existentes na Encíclica, divulgando-a entre as pessoas, as comunidades, as instituições, as religiões e as diferentes organizações da sociedade civil”, conclui.

Josafá Carlos de Siqueira, atual reitor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, é graduado em Ciências Biológicas pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, em Teologia pelo Centro de Ensino Superior da Companhia de Jesus e em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. É mestre e doutor em Biologia Vegetal pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a novidade da Laudato Si’ em relação a outros documentos oficiais que foram publicados acerca da questão ecológica até hoje? O que o que o Papa Francisco propõe nessa Encíclica no sentido de ir além do mero discurso “ambientalista”?

Josafá Carlos de Siqueira – A grande novidade da Encíclica consiste nos seguintes aspectos: primeiro, por ser a primeira Encíclica sobre o assunto na história da Igreja, divulgada num contexto internacional onde os sentimentos de frustração e esperança estão muito presentes, diante dos avanços e recuos das últimas conferências internacionais sobre as questões relacionadas com o meio ambiente; segundo, pelo consenso entre as preocupações das ciências e os questionamentos da fé; terceiro, pela visão integralentre ecologia humana e ecologia ambiental.

IHU On-Line – Quais os principais conceitos teológicos que aparecem na Laudato Si’ e como eles se relacionam com a teologia e o discurso do Papa Francisco até o momento?

Josafá Carlos de Siqueira – Preferia deixar esta resposta para os teólogos, que certamente se debruçarão sobre a abordagem teológica da Encíclica. Ao chamar o capítulo 3 de Evangelho da Criação, o Pontífice nos fala de um resgate de uma Boa Nova que perpassa a teologia da criação no Antigo e Novo testamentos. Estas abordagens bíblicas precisariam ser melhor tematizadas pelos teólogos. Certamente deve ser um tema muito apreciado pelo Papa Francisco.

IHU On-Line – Em que consiste o conceito de ecologia integral, proposto pelo Papa na Laudato si’?

Josafá Carlos de Siqueira – Ao explicitar o conceito de ecologia integral, o Papa Francisco resgata a visão sistêmica da casa comum, onde não se pode separar o teológico, o antropológico e o cosmológico. Esta visão holística da realidade socioambiental tem sido um desejo de muitos cientistas e organizações da sociedade civil, pois os conceitos fragmentados não ajudam na compreensão integrada do mundo, provocando rupturas e leituras unilaterais. Ao colocar este conceito de ecologia integral, o Papa resgata a interpretação hermenêutica da tradição bíblica manifestativa, onde as relações Deus, homem e natureza estão profundamente imbricadas. Por outro lado, ele atende a um desejo daqueles que lutam por superar os dualismos ecológicos.

IHU On-Line – Como, a partir da Encíclica Laudato Si’, o Papa sugere que seja abordado o diálogo entre fé e ciência no debate ecológico? Nesse sentido, quais são as teses científicas e as teses teológicas que compõem a Encíclica?

Josafá Carlos de Siqueira – Precisaríamos um estudo mais minucioso sobre a Encíclica para sublinhar estas teses científicas e teológicas, coisa que certamente será feita com o passar do tempo. De qualquer forma, parece haver um consenso entre a grande maioria das teses científicas citadas, com as teses de uma teologia que reflete sobre a realidade. Pelo texto percebe-se que houve consultas nas áreas das ciências biológicas, climáticas, sociológicas, filosóficas e teológicas. O número 14 do documento revela o que o Papa espera destes diferentes saberes que estão na Encíclica, a saber, o diálogo e o debate que una a todos neste grande desafio ambiental.

“Ao chamar o capítulo 3 de Evangelho da Criação, o Pontífice nos fala de um resgate de uma Boa Nova que perpassa a teologia da criação no Antigo e Novo testamentos”

IHU On-Line – No capítulo da Laudato Si’, que trata da “raiz humana da crise ecológica”, o Papa menciona que a crise é consequência do antropocentrismo moderno, chamando atenção também para os malefícios do relativismo. Como avalia a tese de que a causa da crise ecológica tem como base uma crise humana?

Josafá Carlos de Siqueira – Acho que o Papa tocou aqui num problema de fundo, pois a crise ecológica é uma crise antropológica. Não existe crise na natureza, e sim no ser humano, que está perdendo a capacidade de administrar aquilo que foi colocado em suas mãos. Num discurso anterior à Encíclica, o Papa afirma que é preciso manter o equilíbrio entre dom e tarefa. A Criação é um dom de Deus, mas a tarefa compete ao ser humano em ser guardião e administrador competente. Quando se esquece o dom, a tarefa sofre consequências, resultando nos desequilíbrios que hoje são mais evidentes no planeta. O antropocentrismo ensimesmado, onde o ser humano se compreende separado das relações com Deus e com a natureza, é, sem dúvida, a causa da crise ecológica.

IHU On-Line – Como o Papa relaciona diferentes temas, como ecologia, desigualdades sociais e economia em sua Encíclica? Que tese ele está difundindo ao propor essas relações?

Josafá Carlos de Siqueira – Acho difícil tratar separadamente estes diferentes temas, pois na Encíclica eles se encontram integrados na visão sistêmica proposta pela Papa Francisco. Alterações ambientais, desigualdades sociais e economia constituem abordagens de uma mesma realidade. A grandeza do documento é que o Papa discursa sobre os mesmos de maneira crítica, mostrando os aspectos éticos, sejam eles positivos ou negativos. Também deixa claro nestes temas a sua crítica aos desequilíbrios ambientais que são fruto da visão utilitarista e do consumismo exagerado, das desigualdades sociais entre ricos e pobres, das injustiças e exclusões geradas pelo modelo econômico de desenvolvimento, da mutilação da natureza, dos contrastes entre desperdício de alimentos e a fome no mundo, etc.

IHU On-Line – Francisco menciona na Laudato Si’ trechos de encíclicas anteriores, como de Paulo VI, João Paulo II, Bento XVI. Que pontos das Encíclicas anteriores são reafirmados na Encíclica de Francisco?

Josafá Carlos de Siqueira – Creio que não é possível mencionar nesta entrevista todos os trechos dos pronunciamentos e Encíclicas dos Papas predecessores. Porém, não podemos esquecer alguns documentos pontifícios que abordaram estas questões socioambientais, como a Octogésima Adveniens (1971), onde o PapaPaulo VI lembra que eticamente o ser humano já tem a consciência de que uma exploração irracional da natureza acaba não só por destruí-la, mas de ser o próprio homem vítima desta degradação. No pontificado de João Paulo II, encontramos vários pronunciamentos e encíclicas que falam destas questões. Como exemplo, podemos recordar aRedemptor Hominis (1979), onde afirma que a exploração da terra exige de nós um planejamento racional e honesto, recordando que “era vontade do Criador que o homem tenha um contato com a natureza como dono e guardião, inteligente e nobre, e não como explorador e destruidor”. Na Centesimus Annus (1991), o mesmo pontífice enumera alguns princípios fundamentais, como a anterioridade teológica da Criação, a dignidade criacional e a sua própria teleologia, e a relação ontológica com Deus e a Criação. No pontificado do Papa Bento, também vamos encontrar muitos documentos em que aparece a sua preocupação com o meio ambiente. Apenas vou citar uma frase dele da qual gosto muito, a saber, “A destruição do meio ambiente e o seu uso impróprio ou egoísta, e a apropriação violenta dos recursos da terra geram conflitos porque são frutos de um conceito inumano de desenvolvimento”.

IHU On-Line – Como avalia as críticas de que Francisco deu mais peso às teses dos ambientalistas que defendem as mudanças climáticas, deixando de lado as posições dos céticos?

Josafá Carlos de Siqueira – É natural que ele tenha dado mais peso às teses daqueles que estão vivendo e lutando para defender as causas que estão mais de acordo com o plano de Deus para com a Criação. Muitos céticos que conheço são teóricos e não alimentam a esperança “que as coisas podem mudar”, como afirma o Papa Francisco na Encíclica. Por outro lado, o Papa critica algumas teses de movimentos ambientalistas, apoiados de maneira muito radical numa compreensão biocentrista da Criação.

“Esta visão holística da realidade socioambiental tem sido um desejo de muitos cientistas e organizações da sociedade civil, pois os conceitos fragmentados não ajudam na compreensão integrada do mundo”

IHU On-Line – Como a Encíclica está repercutindo entre os ambientalistas e no meio científico? O Papa reforça a posição da Igreja de que o mundo tem origem na criação de Deus. Para além da popularização que é feita acerca das questões ecológicas abordadas na Encíclica, como os argumentos teológicos são vistos pela comunidade científica?

Josafá Carlos de Siqueira – Como a Encíclica foi lançada recentemente, ainda é cedo para perceber asrepercussões no meio acadêmico e científico. Uma coisa que já se percebe são os elogios ao protagonismo e carisma do Papa Francisco, tanto entre os crentes e os não crentes. Até o momento tenho recebido inúmeros comentários elogiosos à coragem do Papa em tratar de uma temática complexa e delicada, porém fundamental para o momento histórico em que vivemos. Sua linguagem, sua ousadia e o seu testemunho são aspectos que cativam as pessoas de diferentes credos, raças, ideologias e religiões.

IHU On-Line – As notícias publicadas sobre a Encíclica dão muita ênfase à questão ecológica e à imagem de um papa preocupado com o meio ambiente. Algum outro tema relevante apresentado na Encíclica não está sendo analisado com tanta atenção?

Josafá Carlos de Siqueira – Precisamos analisar com mais detalhes estes outros temas. No momento não tenho condições de responder a esta pergunta.

IHU On-Line – Qual deve ser a repercussão mundial da Laudato Si’? A encíclica poderá ter um peso político, já que foi publicada meses antes da realização da COP-21? De que modo a encíclica do Papa Francisco oferece contribuições para a discussão de um novo acordo climático global?

Josafá Carlos de Siqueira – De um modo geral, a repercussão da Encíclica, até o momento, tem sido muito positiva. Acredito que o documento continuará sendo um instrumento positivo tanto como referência ética para o mundo político e religioso, como também para orientar as práticas sustentáveis em escala local, regional e mundial. Certamente será um documento inspirador e questionador neste processo de preparação para a COP 21. A Encíclica será também um sinal forte de esperança para os diversos encontros internacionais, ajudando a romper o pessimismo e as frustrações de outras conferências, cujos resultados foram extremamente pífios. Agora é momento de ler e conhecer em mais detalhes as riquezas das reflexões existentes na Encíclica, divulgando-a entre as pessoas, as comunidades, as instituições, as religiões e as diferentes organizações da sociedade civil.

IHU On-Line – Algum aspecto da Encíclica deveria ter sido melhor abordado de algum modo, na sua avaliação?

Josafá Carlos de Siqueira – Louvado sejas…

http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/543798-laudato-si-e-o-resgate-de-uma-relacao-integral-entre-deus-e-a-criacao-entrevista-especial-com-josafa-carlos-de-siqueira

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