‘Dilma acha que precisamos consumir e ter chuveiro quente’, diz líder indígena
A escalada de conflitos que envolvem índios no país desnudou o racismo dos brasileiros contra seus povos nativos, diz Sônia Guajajara, uma das maiores líderes do movimento indígena nacional.
“Até uns dez anos atrás, negavam nossa presença, faziam de conta que não existíamos. O racismo estava escondido”, afirma Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). “Hoje o preconceito é muito mais visível e declarado”.
A reportagem é publicada por BBC Brasil, 09-06-2014.
Em entrevista à BBC Brasil no fim de maio, quando esteve em Brasília ao lado de outros 500 índios para protestar, ela atribui o acirramento das tensões no campo à suspensão das demarcações de Terras Indígenas pelo governo federal.
Segundo a líder, integrante do povo guajajara, do Maranhão, o governo paralisou as demarcações para não desagradar políticos ligados ao agronegócio e buscar o apoio deles à reeleição da presidente Dilma Rousseff.
Guajajara, de 40 anos, diz ainda que Dilma desconhece os índios brasileiros e ignora suas aspirações. “Ela pensa que, para ficarmos bem, precisamos ter bens, chuveiro quente, casa de alvenaria”.
“Nossa lógica e nosso modo de vida são outros: qualidade de vida para nós é liberdade, e liberdade é ter nossos territórios livres de ameaças e invasões para produzir sem destruir, como fazemos milenarmente.”
Procurados, o Ministério da Justiça e a Presidência não se pronunciaram sobre as críticas de Guajajara.
Eis a entrevista.
A relação dos índios com o governo federal piorou?
Piorou bastante, e o desgaste tem ocorrido por conta da omissão do ministro da Justiça [José Eduardo Cardozo] em relação à questão de demarcação de terras. Os conflitos no campo se acirraram, e ele simplesmente suspendeu todos os processos de demarcação em curso.
A Dilma demarcou apenas dez terras em quatro anos de mandato, o pior resultado para um governo desde que nossas terras começaram a ser demarcadas. Há 12 processos de demarcação na mesa do ministro Cardozo que dependem somente da assinatura dele. Esses processos já estão concluídos e não envolvem conflito nenhum. Mesmo assim, ele não assina. Eles não querem perder o apoio da bancada ruralista para a eleição da Dilma.
O ministro diz que os processos foram paralisados para evitar conflitos e que as soluções devem ser negociadas.
Todas as medidas do governo para tentar resolver agravaram os conflitos. Quando em 2012 saiu a portaria 303 da Advocacia Geral da União [que define a posição do órgão federal quanto à demarcação de terras e, entre outros pontos polêmicos, admite obras nessas áreas se houver “relevante interesse público da União”], grandes fazendeiros voltaram a áreas que haviam sido retomadas por indígenas, e só na Bahia índios instalaram 64 acampamentos de retomada de terra.
Temos a sensação de que as mesas de diálogo não são para resolver. Como se pode fazer diálogo se apenas uma das partes tem de ceder sempre? Não são mesas de diálogo, mas de imposição.
O governo e associações rurais dizem que várias das terras reclamadas pelos índios hoje não são ocupadas por grandes fazendeiros, mas sim por pequenos agricultores, que têm os títulos dessas áreas.
Nosso problema não é com o pequeno agricultor. Em quase todas as áreas a serem livradas de intrusos ou devolvidas a indígenas, os pequenos agricultores aceitam sair se receberem indenização. Quem está lutando contra isso e pressionando são os grandes. E o governo não está a fim de pagar, por isso fica se escondendo atrás desse argumento falso.
O clima ruim com o governo se deve somente à atuação do ministro da Justiça?
O ministro da Justiça obedece ordens superiores. A Dilma não está nem aí para nós. Para ela, nem existe índio no Brasil. O interesse dela é o avanço da economia e o desenvolvimento, não importa quem estiver no meio.
Durante todo o governo fomos recebidos uma só vez por ela, em junho de 2013, durante as manifestações. Foi até muito simpática, prometeu que nenhum ato de governo seria implantado em Terras Indígenas sem nos ouvir.
Mas o que vemos é o avanço das hidrelétricas e as obras do PAC ocorrendo sem qualquer consulta. Na região doTapajós [no Pará], quando os munduruku resistiram à construção das hidrelétricas que estão planejadas lá, a presidente publicou o decreto 7957 [que regulamenta o emprego de forças federais em conflitos ambientais]. O decreto permite a entrada da Força Nacional nas Terras Indígenas para facilitar estudos ambientais, mas a presença dela acaba inibindo manifestações.
Há espaço para os índios no modelo de desenvolvimento pregado pelo governo?
A Dilma acha que temos que comprar, consumir e fazer cooperativas para ter dinheiro. Ela pensa que, para ficarmos bem, ter qualidade de vida, precisamos ter bens, chuveiro quente, casa de alvenaria.
Nas grandes obras, às vezes oferecem às comunidades algum dinheiro, achando que vão resolver os problemas. Mas para o indígena o dinheiro acaba sendo um ponto de conflito, porque não temos o costume de lidar com ele. Não temos essa coisa de acumular riquezas.
Nossa lógica e nosso modo de vida são outros. O que a maioria dos indígenas nas aldeias quer é tranquilidade. Qualidade de vida para nós é liberdade, e liberdade é ter nossos territórios livres de ameaças e invasões para produzir sem destruir, como fazemos milenarmente.
Quem o movimento indígena vai apoiar nas eleições?
Estamos numa sinuca de bico. O governo Dilma foi muito ruim para nós, e não há nada que possa mudar nossa revolta, inclusive contra o PT. Mas outro governo de direita do PSDB seria muito ruim também. O Eduardo Campos, apesar de aliado com a Marina Silva, não sabe nem o que são povos indígenas. A Marina acabou se enrolando bastante. É um cenário político muito ruim, que não apresenta nenhuma perspectiva para nós.
Quais os temas mais urgentes para os índios hoje?
Tudo é relacionado à terra. Na Amazônia, a demarcação avançou bastante, mesmo assim praticamente todas as Terras Indígenas sofrem a exploração ilegal de recursos naturais.
Em outras áreas os índios ficaram quase sem terra nenhuma. Em Mato Grosso do Sul, a questão é mais urgente por conta da violência. Os pistoleiros entram nas aldeias, e morre gente todo dia. Em São Paulo, tem uma área, a Terra Indígena Jaraguá, em que 600 índios vivem em pouco mais de um hectare!
No Sul, os indígenas também estão sem terras e há mais de 60 acampamentos à beira da estrada. Quando eles resolvem fazer retomada e lutar pelo direito territorial, são presos.
E tem a situação no Nordeste, onde, além da criminalização e falta de terras, os indígenas têm que lutar pelo seu reconhecimento enquanto etnias, enquanto povos. Lá se acirrou muito o preconceito dos que acham que não é índio quem não tem as características físicas associadas aos indígenas. Sabemos que a violência do processo de colonização, que teve abusos de todos os tipos, inclusive sexual, mudou muito as características desses povos. É uma situação que demonstra o preconceito no Brasil contra os indígenas.
O preconceito tem aumentado?
Ao mesmo tempo que aumentou bastante o número de brasileiros que se autodeclaram indígenas, aumentou muito mais ainda o preconceito e o racismo. Até uns dez anos atrás, negavam a nossa presença, faziam de conta que não existíamos. O racismo estava escondido. Hoje o preconceito é muito mais visível e declarado.
Teve aquele caso no sul do Amazonas, onde população da cidade de Humaitá se revoltou com os índios, tacando fogo nas aldeias e nos prédios públicos que cuidam das questões indígenas [os ataques ocorreram em dezembro de 2013 após a morte de três moradores que sumiram enquanto cruzavam uma área da etnia tenharim; desde então, seis índios foram presos e acusados pelas mortes, mas negam o crime].
Tem havido no Brasil um forte avanço das políticas afirmativas, especialmente em favor dos negros, como as cotas em universidades e em concursos públicos. Os índios, porém, parecem ainda não ter conquistado o mesmo espaço nessas políticas e nas instituições do Estado. Por quê?
De fato tem avançado bastante a inserção do negro na universidade, inclusive em ministérios e no Parlamento. Mas isso não quer dizer que a situação deles melhorou lá na ponta. Veja a situação dos quilombos. Eles têm as mesmas dificuldades que nós. Temos a preocupação de não ter representantes só por ter. Queremos indígenas nos espaços de decisão, mas com autonomia.