Amazônia: agroecologia feminista contra o latifúndio
Animadora exceção no Pará — Estado onde os ruralistas mais matam e devastam. Uma associação agrícola revela que o ser humano pode conviver com a floresta; e que o machismo caboclo também cede
Por Bob Barbosa, no Brasil de Fato
“Aqui no centro, a minha área é pequena: um terreno de 15 metros de frente por 100 metros de fundo. Eu desenvolvo nessa propriedade vários plantios. Tudo que eu vou pegando, vou plantando. Eu tenho maracujá, cupu [é o mesmo que cupuaçu], açaí, pupunha, banana, enfim, uma variedade de frutas no meu quintal, além da criação de galinhas. Lá no lote do interior, a gente planta arroz, milho, banana, macaxeira, maniva, a produção de mandioca né. Lá eu tiro também cupu e café. São poucas coisas que eu consumo do comércio. A minha produção primeiramente é para a minha mesa, depois para a do vizinho. Primeiro para a minha alimentação, O excedente a gente tira para vender, para comprar algo que a gente precisa.”
Maria Irlanda de Almeida, 56 anos, que é da comunidade de Tauari, na Floresta Nacional (Flona) Tapajós, tem um lote de 100 hectares no interior de Belterra, para os lados da BR-163. Ela também tem uma pequena propriedade na área urbana e faz parte da Amabela, a Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Município de Belterra, no interior do Pará.
Nesta reportagem, as agricultoras contam que o fato de se organizarem também por gênero lhes deu autonomia em relação aos seus companheiros, por exemplo. Parte desse empoderamento se dá pela comercialização dos produtos, não só pelo benefício financeiro, mas também pela possibilidade de viajar, conhecer outras pessoas, ampliar os horizontes.
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Um dos desafios das trabalhadoras rurais da Amabela, desde o início, é dar vazão ao excedente da produção, garantindo a comercialização do que elas produzem.
A agricultora Selma Ferreira, avalia que “a maioria das nossas mulheres trabalha dentro da cidade de Belterra e a ideia dos quintais produtivos é voltada para elas, que são rurais e urbanas ao mesmo tempo. Elas plantam dentro dos seus quintais, fazem a divisão, o canteiro, plantam frutas, fazem o galinheiro, de tudo um pouco. De dentro desse quintal produtivo elas tiram o seu próprio alimento.”
Mas, segundo Selma, elas também doam, trocam com as vizinhas e vendem para arrecadar um pouco de renda para a família. Assim, as mulheres levam os produtos para comercialização nas feiras e vendem também em suas casas.
“Hoje a gente tem um local, o ‘Cantinho da Amabela’, que fica no Centro Turístico de Belterra, ao lado da prefeitura. Lá, a gente vende nossos artesanatos, nossas plantas, nossas frutas, nossas sementes, nosso alimento, nossos sabores.”
Todas as quintas, por exemplo, elas se deslocam 51 quilômetros até Santarém para participar da Feira da Agricultura Familiar da Ufopa (Universidade Federal do Oeste do Pará), onde se expõe, além dos produtos da Amabela, também a produção agrícola e extrativista, in natura e beneficiada, de Santarém e Mojuí dos Campos.
“Para a feira na Ufopa a gente leva de tudo: biscoito, licor, galinha caipira, ovo, beiju, pé de moleque, bolo, tudo que a gente consegue fazer na agricultura familiar. O que a gente produz a gente leva. Para a feira vamos com um grupo de oito mulheres da Amabela. Saímos daqui de Belterra às 5h da manhã numa van e chegamos em Santarém às 6h30 da manhã. Quando chegamos lá a gente põe nossas coisas num carrinho de mão e empurra até a Ufopa para serem comercializadas. Essa é a parte mais difícil”, diz Lindalva Castro.
Maria Irlanda reforça que “através da Amabela a gente já teve várias oportunidades em relação a venda, de expor a nossa produção em vários lugares. Aqui no CAT (Centro de Atendimento ao Turista), por exemplo, nós temos essa oportunidade dada pela prefeitura de Belterra. A gente veio para esse espaço e trouxemos a nossa produção. Com a Amabela, também, a gente participa dos cursos, dos treinamentos, das capacitações que surgem”.
Sandra da Silva, a agricultora que voltou a gostar de agricultura após fazer parte da Associação, ressalta a importância das capacitações. “Já fiz alguns cursos pela Amabela: plantas medicinais, manejo de galinhas caipiras, como a gente deve plantar as hortaliças, de sandálias de borracha, achei muito bom e ainda tem outros que eu estou esperando para a gente melhorar mais nossa capacidade de crescer.”
Com apoio da Casa Familiar Rural, a Amabela realiza também a exposição “Sementes, Sabores e Saberes”, em que as agricultoras compartilham sementes crioulas, divulgando a importância de se trabalhar com elas. Outro apoio importante vem da prefeitura, que cede o espaço do Centro de Atendimento ao Turista, para que elas tenham um local permanente para a venda dos produtos.
Quebrando barreiras
Mas por que ter uma associação só de mulheres agricultoras?
Acompanhando a Amabela desde a sua concepção, Sara Pereira, educadora popular da Fase Amazônia, recorda que “nos programas de formação com elas, a gente percebeu – e elas também – que existem muitas demandas são específicas das mulheres e que, pela dimensão do sindicato, elas acabam não sendo contempladas. Porque a associação de mulheres agricultoras não discute apenas o aspecto produtivo, que é importante e fundamental, mas trata de questões do feminismo, sobre qual a importância de se organizar enquanto mulheres, das pautas que são específicas delas, das questões relacionadas ao acesso à saúde, aos direitos previdenciários. E também as questões relacionadas aos relacionamentos, não só relacionamento familiar com os filhos, mas também com o companheiro, com o esposo.”
Selma confirma essa avaliação, ao lembrar que nas famílias tem muita resistência, por exemplo, dos homens. “Há maridos que compreendem e até ajudam a associação, mas tem outros que privam elas. A Amabela veio para que essas mulheres tenham autonomia. E os homens não estavam acostumados a isso, não tinham esse costume. A mulher deles era para ficar só dentro de casa, lavar louça, limpar a casa, cuidar de filhos. Cama, mesa e banho. E hoje, não. Hoje as mulheres saem da porta para fora, e essa é a maior dificuldade. Tem muitas que ainda não tem essa força de enfrentar. Os filhos homens também reclamam muito: ‘a mamãe não para mais em casa, isso não está certo, papai, tem que fazer a mamãe ficar dentro de casa, mesmo’. Então isso cria uma dificuldade muito grande para as mulheres.”
Sandra concorda: “Para mim, a Amabela representa a nossa liberdade, a gente poder fazer aquilo que a gente acha que deve fazer, porque ainda tem muitas mulheres presas naquilo que só diz respeito ao marido.”
Nesse sentido, Sara salienta que “quando elas se organizaram na Amabela, perceberam que podiam ir para além do aspecto produtivo”. Isso porque a associação é uma ferramenta onde elas se solidarizam umas com as outras, “porque elas compartilham as histórias e uma ajuda a outra, não só na produção, mas com relação aos problemas familiares, no cotidiano, na luta”.
As reuniões da associação proporcionam também um ambiente de reflexões e questionamentos. Selma conta que “a gente senta dentro da roda de conversas e tem umas que não querem contar o que está acontecendo.
“‘Ah, a fulana hoje não apareceu no nosso encontro, o que está acontecendo?’. Aí, aquela que sabe já conta, e nós vamos tentando resolver. A gente não tem um estudo ou a capacidade de fazer com se quebre algumas barreiras, mas muita coisa a gente consegue resolver dentro da roda de conversa”.
Como afirma Sara, “a Amabela é muito mais do que uma ferramenta do ponto de vista produtivo. É uma ferramenta de libertação para essas mulheres, na busca pela sua autonomia, pelo seu empoderamento, pela sua participação política na sociedade”. Ou como diz Selma, ao falar das companheiras da Amabela:
“Quando eu lembro os olhinhos, os sorrisos, a alegria de cada uma em poder mostrar que sabem fazer… Só de elas dizerem ‘eu sei’, ‘eu posso’, ‘hoje eu consigo’… É maravilhoso!”
Fonte: http://outraspalavras.net/outrasmidias/capa-outras-midias/na-amazonia-agroecologia-feminista-contra-o-latifundio/