Água no Semiárido: “Pra que e pra quem?”
A história de luta e resistência, descrita a seguir aconteceu no semiárido paraibano, no período entre os anos de 1998 e 2017, no bioma caatinga, mais precisamente na região do vale do Paraíba, entre os municípios de Natuba, Itatuba e aroeiras, uma região onde a paisagem seca dura períodos prolongados de ate oito meses, onde a falta de agua sempre foi discurso por parte de todos e todas, mas mesmo com esse discurso, os habitantes do vale do Paraíba, sempre viveram e aproveitaram o que o leito do rio tinha para oferecer, como as vazantes para produção de frutas, verduras, legumes, e forragem para os animais, a criação de pequenos animais e para essas atividades usando a agua do rio mesmo sem ser perene; isso era prática das mais de mil famílias que ocupam essa região de bioma caatinga.
Aproveitando esse discurso histórico de seca, combate à seca, falta de agua, foi planejada a terceira maior barragem do estado da Paraíba, de denominação barragem de Argemiro de Figueiredo (barragem de Acauã) com capacidade de 243 milhões de metros cúbicos de agua, que represaria o rio Paraíba no encontro do mesmo com seu afluente Paraibinha, entre os municípios de Natuba, Itatuba e Aroeiras. As famílias, por causa do problema histórico de falta de agua e seca, passaram a ter perspectiva de melhoria de vida e desenvolvimento a partir da construção da barragem para manter produção de culturas irrigadas para alimentação humana e animais. Como a maioria das construções de grandes barragens, chegam os engenheiros para conversar com as pessoas mais influentes da região, os trabalhadores não participam da conversa, preparam-se os passos de acordo a legislação, o estudo de impacto ambiental EIA / RIMA, medição, avaliação e audiência publica.
No entanto, aqui no vale do Paraíba isso se deu de forma diferente e muito rápida. Em março de 1988, apareceram as primeiras pessoas ligadas ao governo falando sobre a construção da barragem, no dia 13 de junho do mesmo ano já haviam maquinas rasgando a terra para fazer a fundação do alicerce de onde seria a barragem, sem ter consultado a população, que sequer acreditava que realmente iria acontecer a construção. Os responsáveis, aproveitando a inocência das mais de mil famílias que seriam atingidas diretamente, fizeram a construção de forma rápida e sem interrupção. Em 1999 começaram as medições e as famílias começaram a perceber que haviam muita coisa erradas. No inicio do ano 2000 mesmo com a represa já com altura de 10 metros, já com pessoas desabrigadas pela agua, ainda não se tinha nenhuma indenização por parte do consócio constituído para explorá-la ou do estado. Foi ai que uma pessoa da região que era professor da UFCG, descobriu na internet uma organização que tratava do problema, o MAB- Movimento de Atingidos por Barragem, uma organização nacional e internacional. Feito o contato a coordenação enviou um militante que veio a região, e constatou que havia muitas famílias impactadas. Dai começou uma rodada de reuniões nos três municípios, em sete comunidades e pensando organizadamente buscando soluções que atendessem a todos que estavam com problemas comuns. Os passos seguintes foram ocupações do canteiro e do prédio do governo do estado. Dai começou a acontecer o que deveriam ter acontecido no inicio do processo: audiência publica que foi marcada para a capital do estado a 132 km da comunidade e nem se quer avisaram as famílias. Começaram também a divulgar as avaliações das propriedades impactadas. As terras cujo valor era entre 700 e 5 mil reais estavam sendo avaliadas em 200 reais o hectare. Tudo apontava que as famílias não iria ser indenizadas, porque segundo o governo, as terras pertenceriam à marinha. Começou também a construção das vilas de placas pré-moldadas, uma serie de absurdos. Com a barragem quase pronta ninguém havia recebido nada. Depois das mobilizações começaram as indenizações. Como eram muito pouco o valor a receber, os atingidos eram obrigados a aceitar as casas de placa, pois o valor pago pelas casas não dava nem para comprar em alguns caos as portas. Assim se fizeram as indenizações de seis das sete comunidades, isso porque uma das sete, a qual diziam que não seria atingida e quando a barragem estava totalmente cheia ela ficou parecialmente em baixo d’agua. Em 2002 a barragem ficou pronta sem terem sido concluídas as indenizações nem a construção das vilas. Ao termino da construção da barragem de Acauã fizeram o estudo de impacto social e ambiental. Em 2004 a barragem enche rapidamente e muitas famílias perderam tudo, pois, não tinha para onde ir já que ainda não tinham sido entregues as casas das vilas. A defesa civil e a ajuda de voluntários fez a retirada das famílias em um estado de calamidade pública. Em 2005, a partir de muita pressão popular em âmbito estadual e nacional, mandaram uma equipe do Ministério da Integração Nacional que encaminhou relatório mandando indenizar e assentar novamente todas as famílias atingidas. Em abril 2007 uma comissão de direitos humanos ligada ao secretario da Presidência da Republica, visitou as comunidades atingidas e extraiu um relatório com 27 paginas de denuncias e irregularidades. Neste relatório as vilas são chamadas de campo de concentração moderna, os atingidos por Acauã são considerados o pior caso violação de direitos humanos no caso de atingidos por uma construção de uma barragem da América Latina, e um dos piores casos do mundo. Em 2013 foi feita uma nova visita por essa mesma comissão de direito humanos e foi constatado que os problemas só vêm aumentando com o passar dos anos.
Moramos as margens da terceira maior barragem do estado da Paraíba e não temos acesso a agua. Uma comunidade chamada Costa no município de Natuba, que foi construída no meio de uma montanha a 7 km da agua, as mais de mil famílias de agricultores (as) foram transformadas em sem terras e não tem onde produzir. Algumas vivem de doações, com total abandono por parte do estado e até mesmo repressão contra as lideranças das bases, inclusive tendo uma de suas lideranças assassinada por pistoleiros que ate hoje, 11 anos depois, continua sem punir os assassinos. As famílias antes viviam dignamente em suas terras produzindo mesmo com pouca agua, mas hoje vemos tanta agua e não temos como produzir, pois vivemos em verdadeiros currais humanos de 4 hectares. Nosso acesso a água é somente para consumo humano, enquanto a 100 km tem cidades que possui agua tratada dessa mesma barragem.
Com o total abandono estado, que não esta a serviço da classe trabalhadora, precisamos nos organizar para pensar, praticar alternativa onde poderíamos contribuir para a convivência de todos e todas, já com a prática dos mutirões dos mais idosos e que tinha isso como vivencia dos povos tradicionais. Ajudamos nas construções de casas de tijolos, templos religiosos, campo de futebol, sistema de captação de agua bruta. Fizemos isso na comunidade de Melancia no município de Itatuba onde resido e milito no Movimento de Atingidos por Barragem desde o inicio dos anos 2000. A chegada da pastoral dos migrantes do nordeste trouxe alguns projetos de captação de agua de chuva. As primeiras eram coletivas e em fundo rotativo solidário, onde todo trabalho sendo em mutirão, e depois com projetos do governo federal de convivência com o semiárido p1mc e p1+2, onde garante segurança alimentar e nutricional, depois com projetos de criação de pequenas aves em fundo rotativo e com formação continuada de jovens.
O primeiro ensinamento que podemos passar é que nenhum projeto vai dar certo se não escutar quem está na base, o segundo é que se não respeitar o espaço no qual se vive, vai-se destruir tudo em nome do progresso. O terceiro é que não se pode mudar o mundo sem mudar primeiro o eu. O quarto e mais importante: a importância da formação politica de quadros, sem formação não há saída.
Sergio da Silva Oliveira militante do MAB por 8 anos, agente pastoral do serviço pastoral dos migrantes, agricultor, filho de agricultor, que vive em busca do bem viver, onde outro mundo é possível.
Comunidade melancia, Itatuba-paraíba, 25/07/2017.
Sérgio da Silva Oliveira é multiplicando do Processo de Formação Continuada e Multiplicadora do Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social.